Regina Pessoa é a figura de quem mais se fala no mundo do cinema nacional. É ela a realizadora que, pela segunda vez, consegue entrar na "short-list" das nomeações aos Óscares, neste caso das estatuetas para Melhor Curta-Metragem de Animação.

Em 2006, “História Trágica com Final Feliz” chegou à ambicionada “short-list”, mas não ao quinteto de nomeados final, e agora é “Tio Tomás - A Contabilidade dos Dias” a repetir o feito: se conseguir passar à etapa seguinte será nada menos que o primeiro filme português a ser nomeado a um Óscar em 92 anos de cerimónias da Academia.

Regina Pessoa nasceu em Coimbra, licenciou-se em Pintura na Universidade do Porto e fez parte de geração de artistas que revolucionaria a animação portuguesa a partir de meados dos anos 90, e que conquistaria as mais elevadas distinções internacionais no século XXI. Se o seu primeiro filme, “A Noite” (1999), congregou elogios dentro e fora de portas, as obras seguintes tornaram-na uma das animadoras mais elogiadas do mundo, com cada uma a receber enxurradas de prémios em todo o planeta.

A “História Trágica com Final Feliz” (2005), que ganhou o troféu máximo do mundo da animação, o Grande Prémio do Festival de Annecy, gerando surpresa generalizada quando falhou a nomeação ao Óscar, seguiu-se “Kali o Pequeno Vampiro” (2012), que chegou à nomeação aos Annies, e agora “Tio Tomás”, que está duplamente nomeado aos Annies e na “short-list” dos Óscares.

O filme, tal como os anteriores, teve o prestigiado National Film Board of Canada como um dos co-produtores internacionais, e recorda o tio da realizadora, que assume também a função de narradora, e que era visto como uma figura excêntrica por aqueles que o rodeavam mas cujas inclinações artísticas seriam importantes no desenvolvimento da cineasta.

Tio Tomás - A Contabilidade dos Dias

É correto dizer que este filme marca uma viragem na tua obra, no sentido em que deixas de te retratar a ti própria e passas a focar a atenção noutra pessoa, no caso no teu Tio Tomás?
Do meu ponto de vista, penso que sim. Claro que o meu filme continua a abordar bastante a minha infância, tal como todos os outros, mas desta vez coloco-me do ponto de vista de onde estou hoje, de adulta, de alguém que vê esse passado em perspetiva.

O que te fascinava nele era o facto de ele não ser igual aos outros, de ser visto como um excêntrico por quem o rodeava?

Sim, mas era também o facto de ser um homem bom. Ele era excêntrico, mas ao mesmo tempo era alguém em quem confiava, com quem podia contar e que não tinha o que os franceses chama de “arrière pensée”, não tinha reservas mentais ou segundas intenções, e isso também me fazia ter confiança nele. Gostava dele porque ele era bom, tinha tempo para nós, os sobrinhos, brincava connosco. E era diferente dos outros adultos, que se portavam como adultos enquanto ele se portava como nós, o que fazia dele uma pessoa excecional para mim.

Cada um dos teus filmes leva vários anos a fazer e obviamente não podes desistir a meio do processo. Como é que arrancas com a certeza de que é mesmo esse o tema que te vai ocupar os próximos cinco a sete anos de vida e como manténs isso interessante ao longo do trajeto?

Para mim, essa motivação tem de estar completamente clara desde o início. No caso deste filme, há muito tempo que que queria fazer algo a partir das minhas memórias e também dos materiais que guardei do meu tio: os diários, as agendas, as contas, todos esses objetos também aparecem no filme, porque achava isso interessante, fazia parte dele e da personalidade dele, e queria homenageá-lo. Neste projeto, encontrei uma espécie de mote que me acompanhou sempre e que era: “uma pessoa não precisa ser célebre nem fazer nada de especial na vida para ser importante nas nossas vidas”. E o meu tio era isso, portanto quando embarco num processo longo, como são os meus filmes, essa motivação é essencial ao longo de todo o trajeto e é isso que me mantém até ao fim. Porque se o tema não fosse relevante para mim, se não encontrasse essa motivação, era mesmo uma tortura.

TRAILER "TIO TOMÁS - A CONTABILIDADE DOS DIAS".

Calculo que o facto dos filmes serem autobiográficos ajude…
Sim, porque sei do que é que estou a falar e porque é que estou a falar. Aliás, agora dou aulas na Alemanha e uma das coisas que digo aos meus alunos quando eles apresentam projetos é que, antes de tudo, respondam pelo menos a estas três perguntas: O Quê? Porquê? Como? Porque isso ajuda a definir muitas coisas. Os meus temas começaram a ser autobiográficos porque a minha formação é visual e não literária ou de escrita, e para mim no início foi mais fácil falar de pequenas coisas que conhecia. Porque não tenho especial talento para escrever ficção e portanto isto para mim foi uma via de fugir a essa dificuldade. E depois comecei a achar motivador e envolvente seguir esse caminho.

Tem sido uma surpresa que filmes tão autobiográficos tenham tido um acolhimento universal? Podia dar-se precisamente o inverso…
Tem sido uma agradável surpresa, até porque comecei a contar coisas mesmo muito simples. O meu primeiro filme, “A Noite”, é sobre uma menina que tem medo do escuro, que é das coisas mais comuns e mais banais em que se pode pegar. E, na verdade, quem sou eu para começar a fazer filmes com grandes aventuras ou com temas mais ambiciosos ou políticos? Não sou capaz de fazer isso, não tenho essa formação nem esse “know-how”. Portanto, a via que encontrei foi mesmo falar das minhas pequenas coisas, muito simples e muito humildes. E, de facto, foi uma surpresa ver o quão isso se tornou universal.

Já refleti sobre isso e acho é o facto dos temas serem tão comuns que torna os meus filmes universais, porque qualquer pessoa se pode reconhecer com aquelas situações. E por outro lado, o facto de contar a minha história pessoal e única torna os meus filmes também únicos, só eu é que posso falar daquela experiência daquela forma porque fui eu que a vivi. E penso que é a conjugação desses dois factores que tornam os meus filmes tão universais e lhes tem valido tanto reconhecimento.

créditos: Rui Farinha

O “Tio Tomás…” é também co-produzido pelo National Film Board of Canada, que tem sido um dos produtores dos teus filmes anteriores. Esta exposição internacional torna-se mais fácil quando há um produtor com este peso, mais capaz de abrir caminho nos mercados anglo-saxónicos do que tem sido habitual no cinema português?

Sem dúvida alguma. Aliás, tenho consciência que desde que comecei a ter co-produções internacionais com os meus filmes, com a “História Trágica com Final Feliz”, e que foi já um pouco com os parceiros que mantenho hoje, da França e do Canadá, senti um crescimento enorme a vários níveis, artística e humanamente. A nível pessoal é extremamente vantajoso porque só recentemente é que há alguma formação a nível de animação em Portugal, mas quando comecei não havia quase nada, o que quer dizer que era preciosa a experiência de trabalhar noutros países, porque neste tipo de co-produções uma parte artística do filme também tem de ser feita nesses países. O que aprendi com esses profissionais franceses e canadianos foi imenso e inestimável.

Por outro lado, a curta não tem mercado, tem uma vida curta. E o facto de haver, neste caso, três países a lutar pelo filme, aumenta em três vezes as possibilidades que ele tem. O que nós fazemos no início de cada produção é estabelecer que parte é que vai ser feita em cada país e também, depois de feito o filme, quais os territórios de distribuição da responsabilidade de cada um. No caso, o Canadá é responsável pela distribuição na América toda, exceto no Brasil porque Portugal tem uma relação privilegiada aí. E sendo responsável pelo continente americano, sabe quais as melhores estratégias para conseguir lá singrar. Além de que, claro, juntando os orçamentos de três países, conseguir ir-se mais longe.

Ganhaste o Grande Prémio do Festival de Annecy com o “História Trágica com Final Feliz”, que esteve na “short-list” dos Óscares e gerou grande surpresa quando não passou à fase seguinte. Depois foste nomeada aos Annies pelo “Kali O Pequeno Vampiro” e com este novo filme estás outra vez nomeada aos Annies e na "short-list" dos Óscares. Será desta?
A verdade é que a relação com esse mercado e esse universo, a que nós portugueses somos um pouco alheios, foi longa e crescendo e ganhando confiança ao longo destes três filmes. Como disseste, tudo indicava que o “História Trágica…” mereceria ser nomeado e acabou por não ser, mas fiz a turné nos EUA e dei a conhecer o meu trabalho. Apesar de não ter sido nomeada, foi útil o iniciar dessa relação, porque eles são anglófonos e existe uma maior recetividade a filmes de um determinado eixo do planeta do qual nós, latinos, estamos um pouco excluídos. Quando voltei a fazer a turné com o “Kali…”, já senti diferenças, havia pessoas que se lembravam do meu trabalho anterior, e agora com o “Tio Tomás…”, ao voltar a fazer o percurso nos EUA havia muito mais gente que se recordava dos meus filmes anteriores e dizia estar contente por me voltar a ver. E claro que tudo isto conta.

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Será a primeira nomeação para um filme português, caso aconteça...
Acho que será muito importante se acontecer porque a nomeação para o Óscar é um canal, é uma porta que se abre para o cinema nacional. Quando outro filme tiver a etiqueta de Portugal, pelo menos esse nome já não será desconhecido na Academia. Penso que é muito importante.

Como é o processo? Para entrar na corrida, o filme ou ganha um prémio relevante num dos festivais internacionais considerados pela Academia ou tem de fazer uma semana de exibição em Los Angeles, certo?
Exato, e neste caso quando fui fazer a turné em Los Angeles, o filme já estava qualificado porque ganhou um prémio importante em Annecy. Primeiro, o importante é qualificar o filme e há que ter certos cuidados. Por exemplo, o meu filme foi também co-produzido pelo canal televisivo Arte e ele não seria aceite aquando da inscrição aos Óscares caso já tivesse sido exibido na televisão. Mas antes de tudo, é preciso qualificar o filme. Felizmente, tive um prémio em Annecy que o qualificou à partida. A seguir, até tive mais prémios que o qualificariam, mas essa parte ficou fechada, embora as distinções tenham reforçado a importância do filme. Quando fiz a turné nos EUA, em setembro e outubro, ele já estava qualificado e portanto era uma campanha de promoção pré-votação.

No contexto português, chegar à nomeação é quase tão importante como ganhar o Óscar

Já não é a primeira vez que estás nesta corrida. Que expectativas tens desta vez?
Expectativas cautelosas, porque já tive a experiência anterior. Estou com calma a viver com alegria cada etapa conseguida. São quatro etapas [qualificação, "short-list", nomeação e vitória] e já consegui duas. E estou a aproveitar cada nova etapa seguinte com muita alegria porque posso não passar à seguinte. E neste caso, claro, no contexto português, chegar à nomeação é quase tão importante como ganhar o Óscar.

Tio Tomás - A Contabilidade dos Dias

Tu és membro da Academia desde 2018, portanto este ano é a segunda vez que votas. Como se faz esse processo?
Votei o ano passado e este ano. O processo é muito organizado e tem datas restritas e muito curtas. Por exemplo, agora para os nomeados começou no dia 2 e acabou no dia 7, portanto foram apenas cinco dias de votação. Nós temos o nosso acesso, o "log-in" à nossa página da Academia, depois há um outro "log-in" para se votar, com várias mensagens de confirmação, e onde temos meia hora para votar. Antes disso, claro, há a campanha e temos acesso na nossa página aos "screeners" em streaming. E eles estão sempre muito atentos e a enviar mails a relembrar-nos para ver os filmes. E só podemos votar se tivermos visto os filmes, temos de marcar lá na plataforma se vimos.

Há muitos departamentos da Academia, a que eles chamam “branches”. Estou no da Animação e nas primeiras etapas posso votar em determinadas categorias, como nas de animação de curta e longa-metragem, e curiosamente posso votar também no Melhor Filme. Na votação final, já depois das nomeações estarem cá fora, posso votar em tudo ou abster-me caso não tenha visto os filmes.

Com tanto sucesso nas curtas e com a atual moda das longas-metragens de animação, está nos teus planos seguir essa via?
Não. Gosto do formato curto e é mesmo o que acho adequado à linguagem da animação. Confesso que para mim, pessoalmente, é penoso ver longas-metragens de animação. Acho que tem a ver com a perceção: a animação é a síntese ou o exagero do movimento, são essas as nossas ferramentas na animação, exagerar ou simplificar o movimento. Estar atenta durante tanto tempo a esse tipo de esforço exige outro tempo de atenção, e isso para mim custa-me. Gosto muito do formato curta e é nele que posso permitir-me estes visuais mais elaborados que gosto de concretizar. E se fizesse uma longa teria obrigatoriamente de fazer concessões e encontrar compromissos que não me interessam, até porque eles resolvem muito as situações com diálogos, com personagens que passam a vida falar umas com as outras, e não gosto disso.