Pedro Almodóvar festeja 72 anos de idade este sábado com um estatuto invejável: a par de Luis Buñuel, é o realizador espanhol mais reconhecido da história do cinema. A ele devem muito das suas carreiras atores como Antonio Banderas, Penélope Cruz, Carmen Maura, Marisa Paredes, Victoria Abril ou Javier Bardem.

"Paralelamente", o realizador está no 47º ano da sua carreira e a passar por um grande momento, o que acontece não muito depois de alguns vaticinarem que os seus melhores filmes já estavam para trás e até que preparava a despedida.

Após ganhar sete prémios Goya em janeiro de 2020 pelo autobiográfico "Dor e Glória", onde reencontrou Banderas, Almodóvar avançou em julho, em plena pandemia, para a rodagem da curta-metragem "A voz Humana" com Tilda Swinton, o seu primeiro trabalho em inglês.

Rodagem de "A Voz Humana"

Repleto de cores e referências à sua cinematografia, com um texto brilhante que se inspira num texto de Jean Cocteau de 1929, a curta foi um exemplo perfeito da arte de Almodóvar, que voltou a abordar um dos seus temas favoritos com o seu habitual estilo corrosivo e teatral, o de uma mulher abandonada pelo seu amor, com um cão e algumas malas.

Mas ainda antes, durante o confinamento, o realizador escreveu o argumento do 22º filme, "Mães Paralelas", que, se tudo correr como o previsto, chegará aos cinemas portugueses a 2 de dezembro.

Como o título deixa antever e o "casting" de Penelópe Cruz confirma, Almodóvar regressa ao universo feminino, contando ainda com Milena Smit, Aitana Sánchez-Gijón e Israel Elejalde, além de "chicas" de outros filmes como Rossy de Palma e Julieta Serrano.

A nova história anda à volta de duas mulheres, Janis e Ana, ambas solteiras que engravidam por acidente e reagem de maneira muito diferente: a primeira, já na meia-idade, fica radiante com a notícia, mas Ana, uma adolescente, está assustada, arrependida e traumatizada. Janis tenta dar ânimo a Ana quando andam pelos corredores do hospital e as poucas palavras que trocam durante essas horas criarão uma ligação muito forte, que o acaso se encarregará de desenvolver e complicar de uma forma que mudará a vida de ambas.

Mas o tema da maternidade serve também para Almodóvar abordar uma questão política: os milhares de desaparecidos durante a guerra civil e a ditadura de Espanha.

"Fala de uma verdade pessoal e de uma verdade histórica. De ancestrais e descendentes. No centro, o dilema moral de uma mulher que quer encontrar o corpo do bisavô assassinado pelos franquistas durante a Guerra Civil [1936-1939], mas ao mesmo tempo enfrenta um segredo íntimo incómodo", resumiu numa entrevista ao jornal italiano La Repubblica em setembro, aquando da passagem pelo Festival de Veneza, onde o filme fez as honras da sessão de abertura e competiu pelo Leão de Ouro.

Mães Paralelas Madres paralelas

A cor chegou ao cinema espanhol

Nascido em Calzada de Calatrava, na região autónoma de Castilha-La Mancha, a 25 de setembro de 1949, antes de partir aos 17 anos para estudar cinema em Madrid, ninguém ficou indiferente a Pedro Almodóvar quando "explodiu" nos anos 1980: os seus filmes contribuíram para arejar um cinema espanhol mergulhado numa crise cultural.

Entre as cores berrantes dos cenários e o carnaval dos figurinos, os primeiros filmes fizeram de forma descontraída e corrosiva o retrato caricatural da sociedade espanhola e das paixões arrebatadoras, perversas e mesmo criminosas dos seus compatriotas. Isso manteve-se quando evoluiu para um cinema mais introspetivo, construindo um universo inconfundível que examina o lado mais vulnerável do ser humano, com as suas angústias, paixões e segredos.

"Pepi, Luci, Bom e Outras Tipas do Grupo" (1980), rodado aos fins de semana com voluntários e um orçamento ridículo, foi o seu primeiro trabalho, onde já aparecia a musa Carmen Maura, mas após o "batismo" internacional (em Veneza, precisamente) com "Maus Hábitos" (1983) a chamar a atenção para os cores e o atrevimento, o primeiro filme que efetivamente o colocou numa posição à parte no interior da indústria espanhola foi "Que Fiz Eu para Merecer Isto?" (1984).

Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos

História de vários personagens que se cruzam num apartamento de Madrid, "Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos" (1988) foi o primeiro sucesso além-fronteiras, mas também o filme que marca uma rutura com Carmen Maura nunca bem explicada.

Logo a seguir, também se despediu com "Ata-me!" (1989) da sua grande descoberta, Antonio Banderas, que quis dar o salto para Hollywood depois de conquistar tudo em Espanha com a projeção conquistada com o realizador em "Labirinto de Paixões" (1982), "Matador" (1986), "A Lei do Desejo" (1987) e o já referido "Mulheres à Beira..."

A Lei do Desejo

Almodóvar continuou fiel à sua Espanha natal, dirigindo "Saltos Altos" (1991), "Kika" (1993), "A Flor do Meu Segredo" (1995) e "Em Carne Viva" (1997), até que uma história sobre personagens marginais (quem mais?), mais madura e trágica, confirmou as figuras femininas como as grandes protagonistas da sua filmografia e consagrou-o definitivamente como o grande autor do cinema espanhol: "Tudo Sobre a Minha Mãe" (1999).

Com uma comovente dedicatória no fim ("A Bette Davis, Gena Rowlands, Romy Schneider... a todas as atrizes que interpretaram atrizes, a todas as mulheres que atuam, aos homens que atuam e se convertem em mulheres, e a todas as pessoas que querem ser mães. À minha mãe"), o trabalho valeu-lhe o Óscar de Melhor Filme Estrangeiro, anunciado efusivamente por Penélope Cruz na cerimónia com um 'Pedroooo!'.

Tudo Sobre a Minha Mãe

Aguardado com imensa expectativa após o sucesso do trabalho anterior, o impacto de "Fala com Ela" (2002) foi ainda maior e valeu-lhe um segundo Óscar, pelo argumento original da história da amizade peculiar de dois homens que tomam contas de duas mulheres em coma profunda.

TRAILER "FALA COM ELA".

A receção ao filme seguinte, "Má Educação", com Gael García Bernal e Fele Martínez, foi mais morna, mas logo a seguir, e já consagrado como o "realizador das mulheres", reuniu as duas musas mais importantes da sua carreira, Carmen Maura e Penélope Cruz, para um regresso às origens: " Volver - Voltar" (2006), que permaneceu o seu trabalho mais consensual até "Dor e Glória".

Pedro Almodóvar durante a rodagem de "Volver - Voltar"

Após dirigir Cruz pela quarta vez em "Abraços Desfeitos" (2009), deu-se o tão desejado e emocionado reencontro com Banderas no inovador "A Pele Onde eu Vivo" em 2011, "um filme de terror sem gritos ou sustos" que permanece uma das propostas mais arriscadas do seu cinema.

A cor de Almodóvar perde brilho... até mergulhar em "Dor e Glória"

Pedro Almodóvar e Antonio Banderas na rodagem de "Dor e Glória"

"Os Amantes Passageiros" (2013), um regresso à comédia e a um formato mais ligeiro e efusivo dos filmes dos anos 1980, com várias histórias paralelas dentro de um avião, desiludiu muitos fãs. Com "Volver - Voltar" já a sete anos de distância, instala-se a sensação que o melhor de Almodóvar já passou.

As dúvidas não se dissipam com o filme seguinte, o melodrama "Julieta" (2016), um regresso aos seus temas mais consensual e visto como o seu trabalho cinematográfico mais sóbrio. Pior, acabou por ser prejudicado pelo escândalo dos "Panama Papers", em que o realizador apareceu com outras personalidades associado a um gigantesco esquema de evasão fiscal: com a imagem pública afetada, foi a sua pior estreia nas bilheteiras de Espanha em 20 anos.

Entre o escândalo, as reações mornas aos últimos trabalhos, o aumento do distância de tempo entre as estreias e os 68 anos de idade, a sensação de que prepara a despedida cresce com o anúncio de que vai juntar no seu 21.º filme Banderas e Cruz, bem como Julieta Serrano, com quem trabalhara no início da carreira. O que se reforça com a descrição de que se trata de uma história com contornos autobiográficos de "uma série de encontros, alguns físicos, outros recordados décadas mais tarde, de um realizador no crepúsculo da sua carreira".

O trabalho chamou-se "Dor e Glória" e foi um regresso triunfal, a mais do que um nível.

TRAILER.

Embora tenha prometido que jamais publicaria a sua autobiografia, Almódovar admitiu estar "emocionalmente nu" no filme, abordando de uma forma sóbria, quase púdica, o amor, a dor e a reconciliação.

"Dei-me conta que estava a escrever sobre mim mesmo e, com o passar do tempo, não sabia se ia continuar porque não tinha a certeza de querer expor-me a esse ponto. Mas continuei e agora estou muito contente", recordaria ao receber a estatueta de Melhor Argumento nos Prémios Goya.

Dor e Glória

Penélope Cruz ficou com o papel em "flashback" de uma versão inspirada pela sua mãe. Julieta Serrano interpretou-a nos seus anos mais avançados. Já o realizador "melancólico" que se confundia com o próprio Almodóvar só podia ser, claro, interpretado por Antonio Banderas.

"Levei tempo para compreender que o Antonio era o meu legítimo [Marcelo] Mastroianni", confessava Almodóvar ao El Mundo aquando da estreia do filme em março de 2019, numa referência ao papel de cineasta depressivo que Federico Fellini confiou ao "seu" ator italiano em "Fellini, oito e meio" (1963).

Um ator elevado à glória, mas que sofreu a dor pessoal e um ataque cardíaco nos últimos anos, Banderas conseguiu expressar a vulnerabilidade de um criador mergulhado no seu apartamento-museu para quem a sua vida "perde o sentido" sem filmar. O trabalho valeu-lhe, quase a chegar aos 60 anos, o prémio de interpretação no Festival de Cannes, o primeiro Goya de Melhor Ator e a nomeação para os Óscares.

Apesar de muito se ter especulado com a despedida do cinema, o discurso de Almodóvar ao receber o Goya de Melhor Realização dissipou as dúvidas: "O tempo não passa com isto da dedicação ao cinema. Foi a experiência mais importante da minha vida, como espectador e como cineasta. Não concebo a vida sem continuar a filmar".

Prémios Goya para "Dor e Glória"

Em agosto de 2019, ao receber em Veneza um Leão de Ouro pelo conjunto da obra, Almodóvar partilhou memórias que permitem compreender o seu percurso.

"A Espanha despertava de uma longa ditadura de 40 anos. [...] A coisa mais importante sobre 'la movida' [o movimento artístico durante os primeiros anos da transição pós-Franco] foi o facto de ter-se perdido o medo e poder gozar de uma enorme liberdade", afirmou, reconhecendo que o seu cinema é o "produto da democracia espanhola".

"Os meus filmes são a demonstração de que é real. Quando comecei a fazer filmes, não se falava em diversidade. A vida era muito diferente", recordou.

"Como realizador, coloquei em todos os meus filmes toda a variedade que havia na vida", os temas "almodovarianos": masoquismo, homossexualidade, masturbação, drogas, pornografia e ataques à religião.

"Para mim era a própria vida", acrescentou, numa alusão à sua própria homossexualidade.

"Todas as orientações sexuais eram bem-vindas. Os meus personagens têm autonomia moral, sejam transexuais, freiras ou donas de casa", explicou.

"A mudança que acontecia naqueles anos na Espanha era o que me fascinava. A rua e a noite de Madrid eram infinitas. Era uma grande diversidade e formei-me naquela universidade", admitiu.

E a famosa cor que reina nos seus filmes?

"Era como uma reação contra o lugar onde nasci, La Mancha, então extremamente conservadora, calvinista, com pouca cor e muito árida. O oposto de como eu me sentia", revelou.

"Não me lembro de ter visto a cor vermelha na minha infância. Apenas o preto do luto", concluía com o seu tradicional estilo irónico.

Tudo o que se passa à frente e atrás das câmaras!

Receba o melhor do SAPO Mag, semanalmente, no seu email.

Os temas quentes do cinema, da TV e da música!

Ative as notificações do SAPO Mag.

O que está a dar na TV, no cinema e na música!

Siga o SAPO nas redes sociais. Use a #SAPOmag nas suas publicações.