Martin Scorsese festeja 80 anos esta quinta-feira (Queens, Nova Iorque, 17 de Novembro de 1942) com vários dos seus filmes em lugares de destaque nas listas dos melhores de sempre e muitos dos seus pares, espectadores, críticos e estudiosos do cinema a referirem-se a ele como "o maior cineasta vivo".

Também é o cineasta vivo mais vezes nomeado para o Óscar de Melhor Realização: foram nove vezes (e nem sequer entrou na corrida com "Taxi Driver"), menos três do que o recordista William Wyler (1901-1981). Uma ironia, pois foi visto durante muitos anos o grande "injustiçado" da Academia de Cinema de Hollywood: só se livrou da sina com a vitória à sexta nomeação, por "The Departed - Entre Inimigos", de 2006.

Com a montagem dos seus filmes ordenada na cabeça ainda antes da rodagem para ganhar tempo (a cargo de Thelma Schoonmaker, a colaboradora de sempre), Scorsese mantém um ritmo de trabalho intenso: além de 25 longas-metragens de ficção, dirigiu 16 documentários dedicados ao cinema, à música popular e aos seus heróis, ou a publicações como a revista The New Yorker ("Uma Discussão com 50 Anos", 2013), que o ajudaram a "contar as histórias de outra forma” e a encontrar "uma nova narrativa".

Num especial de aniversário do jornal The Guardian, o conterrâneo e outro gigante, Francis Ford Coppola, chamou-lhe ainda "o maior professor de cinema do mundo", provavelmente uma referência não só ao seu trabalho, que inspirou tantos, no cinema ou noutras artes, mas também pela forma como fala sobre os filmes dos outros, em documentários, ensaios ou festivais: pode ser um cliché, mas Scorsese, no seu um metro e 63 centímetros, realmente respira "cinema" 24 horas por dia praticamente desde que nasceu....

O cinema como uma "realidade"

Scorsese queria ser padre e muitos dos seus filmes trazem o seu selo da sua devoção (e culpa) católica. Mas também foi muito cedo foi atraído pelo mundo mágico do cinema, uma obsessão que procurou explicar no documentário de três horas e 45 minutos que realizou em 1995 chamado "Uma Viagem com Martin Scorsese pelo Cinema Americano" (1995).

"Tive muitos ataques de asma e levaram-me muito ao cinema”, lembraria numa homenagem em 2018, acrescentando que partilhar essas experiências com a sua família fez com que a Sétima Arte se tornasse para ele uma "realidade".

Frequentou a escola de cinema da Universidade de Nova Iorque. Uma das suas curtas, "The Big Shave", ficou famosa na altura (1967), mas o seu primeiro 'filme a sério' foi "Quem Bate à Minha Porta?" (1967), protagonizado pelo seu colega de escola Harvey Keitel, que o tornou conhecido dos chamados 'movie brats' que também transformariam o cinema americano nos anos 1970: Coppola, George Lucas e Brian De Palma.

Foi De Palma que o apresentou à pessoa com quem descreve ter uma relação "telepática" e "muita sorte" por terem trabalhado juntos, construindo uma das mais célebres colaborações na história do cinema: Robert De Niro.

Após documentários como "New York City... Melting Point" (1966) e "Street Scenes" (1970), dirigiu o seu segundo filme em 1972, "Uma Mulher da Rua", para o famoso produtor de filmes B Roger Corman, aprendendo a fazer filmes baratos e depressa, preparando-o para o seu primeiro encontro com De Niro em "Mean Streets", ou "Os Cavaleiros do Asfalto" em Portugal.

Este seu primeiro grande sucesso de público foi o que mudou tudo e o "melhor momento" da sua vida a nível profissional, como viria a reconhecer muitos anos depois, em 2018, pouco antes de receber o Prémio Princesa das Astúrias para as Artes como "figura indiscutível do cinema contemporâneo".

Viagens de choque com "Taxi Driver" e "O Touro Enraivecido"

Jodie Foster, Robert De Niro e Martin Scorsese na rodagem de "Taxi Driver" em 1975

Por escolha da actriz Ellen Bustyn, dirigiu "Alice Já Não Mora Aqui" em 1974, pelo qual ela ganhou o Óscar de Melhor Actriz, mas foi dois anos mais tarde que Scorsese deixou o mundo do cinema de boca aberta com "Taxi Driver": Robert De Niro e uma Jodie Foster com 12 anos tinham interpretações brilhantes num retrato considerado um dos mais violentos e crus sobre a vida em Nova Iorque alguma vez levado ao ecrã.

Palma de Ouro no Festival de Cannes, seguiram-se quatro nomeações para os Óscares, incluindo a de Melhor Filme (perdido para "Rocky"), mas deixando incrivelmente de fora a realização, o sucesso encorajou-o a avançar logo a seguir para o arrojado "New York, New York" (1977), novamente com De Niro, que confirmou um também vasto conhecimento do universo da música.

O tributo musical à cidade natal de Scorsese resultou num enorme fracasso de bilheteira e a má receção crítica levou-o a uma depressão nervosa. Mesmo assim, conseguiu a inspiração para realizar o que será provavelmente o melhor filme de rock, "A Última Valsa", que documenta o último concerto dos The Band em 1978, no mesmo ano em que também fez outro documentário chamado "American Boy: A Profile of - Steven Prince".

O Touro Enraivecido (1980)

Convencido de que não faria mais nenhum filme devido ao seu estado de saúde precário por causa do consumo de cocaína, o próprio Scorsese reconhece que foi De Niro que salvou a sua vida quando o convenceu a desistir do vício e concentrar todas as suas energias na realização de "O Touro Enraivecido" (1980).

Fotografado a preto e branco e amplamente reconhecido como sendo uma obra-prima e para muitos o melhor filme dos anos 1980, a história do torturado pugilista Jake La Motta, cujas complexidades psicológicas e sexuais explodiam em violência tanto dentro como fora do ringue, recebeu oito nomeações para os Óscares: De Niro ganhou, Scorsese e o filme perderam para Robert Redford e "Gente Vulgar", mas o seu impacto permitiu ao realizador continuar a fazer filmes, ainda que, sem um grande êxito de bilheteira, tivesse de continuar a lutar para os conseguir concretizar.

Seguiram-se três títulos vistos na época como “menores” (pelo menos para o realizador com "Taxi Driver" e "O Touro Enraivecido" no currículo), mas reavaliados de forma muito mais positiva com o passar dos anos: "O Rei da Comédia" (1982), o quinto encontro com De Niro, "Nova Iorque Fora de Horas" (1985) e "A Cor do Dinheiro" (1986). Este último, protagonizado por Paul Newman e Tom Cruise, deu ao primeiro o seu primeiro Óscar e a Scorsese a segurança para iniciar um projeto arrojado que há muito lhe era querido....

A Última Tentação de Cristo (1988)

Filmando com um pequeno orçamento, sabendo que seria controverso e não lhe traria grandes dividendos comerciais, nem Scorsese poderia antecipar a dimensão do furor que causaria "A Última Tentação de Cristo" (1988): grandes protestos nos EUA e em vários países europeus, a favor e contra a sua visão do carpinteiro Jesus de Nazaré, atormentado pelas tentações de demónios, a culpa de fazer cruzes para os romanos e o constante chamamento de Deus. E a maior tentação de todas, a da vida normal de um homem bom.

O apoio das mais importantes figuras públicas após as acusações de blasfémia impediu que Scorsese se tornasse num proscrito em Hollywood e até acabou por receber a sua segunda nomeação nos Óscares para Melhor Realização (perdida para Barry Levinson com "Rain Man"), antes da controvérsia arrefecer e a passagem dos anos terem feito subir ainda mais de cotação do filme no ranking da carreira.

A década terminaria ao lado de Woody Allen e Francis Ford Coppola num dos segmentos de "Histórias de Nova Iorque" (1989), mas não se pode esquecer a realização de uma curta-metragem de 18 minutos com Michael Jackson e Wesley Snipes: "Bad" tornou-se um dos melhores e mais icónicos videoclipes de todos os tempos.

O mundo a seus pés com "Goodfellas"

De Niro e Scorsese em "Tudo Bons Rapazes" (1990)

Com "Tudo Bons Rapazes" em 1990, Scorsese regressava à sua Nova Iorque e a De Niro e Joe Pesci (depois de "O Touro Enraivecido"). E foi este filme sobre a vida de um gangster, o seu maior êxito de bilheteira até à altura e considerado o melhor sobre a máfia desde "O Padrinho" de Coppola (1972) que cimentou o seu lugar entre os melhores cineastas de sempre.

Nomeado para os Óscares pela terceira vez, foi a vez de perder para um estreante atrás das câmaras, o ator Kevin Costner, e esse fenómeno de popularidade que foi "Danças com Lobos": das seis nomeações, "Goodfellas" ficou por uma estatueta incontornável, a de Ator Secundário para Joe Pesci como o aterrorizante Tommy DeVito.

Seguiu-se uma nova versão de um 'thriller' de 1963, "O Cabo do Medo" (1992), que além de ser a sétima colaboração com De Niro, provou a Hollywood que Scorsese era capaz de conseguir um êxito de bilheteira de "encomenda" (o projeto acabou por ser a compensação ao estúdio que lhe financiara "A Última Tentação de Cristo"), antes de se virar para projetos mais pessoais, como "A Idade da Inocência" (1993), no qual dirigiu Michelle Pfeiffer, Winona Ryder e, pela primeira vez, Daniel Day-Lewis; "Casino" (1995), novo filme no mundo dos gangsters com De Niro e Joe Pesci, desvalorizado na época pela proximidade com "Tudo Bons Rapazes"; e "Kundun" (1997), considerado o seu trabalho menos 'hollywoodiano'.

Após "Uma Viagem com Martin Scorsese pelo Cinema Americano" (1995), fez outro documentário aclamado, "Martin Scorsese - A Minha Viagem a Itália" (1999) e revisitou "Taxi Driver" e as ruas de Nova Iorque com "Por um Fio", dirigindo Nicolas Cage.

Leonardo Di Caprio: herdeiro de De Niro deu uma nova energia

O Aviador (2004)

Com três anos de produção, a produção de "Gangs de Nova Iorque" (2002), foi vista como a aventura mais arriscada de Scorsese até à altura: um projeto alimentado durante muitos anos sobre a génese violenta da sua cidade, um orçamento de mais de 100 milhões de dólares e muitos 'choques' de frente com o produtor Harvey Weinstein por causa da sua duração final.

As críticas foram moderadamente positivas e houve dez nomeações para os Óscares, incluindo a quarta como realizador para Scorsese. E quando muitos pensaram que seria desta, foi Roman Polanski quem ganhou a (controversa) estatueta com "O Pianista", numa das maiores surpresas na história dos Óscares.

Muito do destaque mediático de "Gangs de Nova Iorque" recaiu na presença de Daniel Day-Lewis como William "Bill the Butcher" Cutting, mas também começava aqui uma nova e fantástica colaboração artística com Leonardo Di Caprio, escolhido dez anos antes por De Niro entre 400 candidatos, quando tinha 17, para contracenar consigo em "A Vida deste Rapaz" (1993).

O encontro com a estrela de "Titanic", reconheceu depois Scorsese, deu-lhe "uma nova energia" e o amigo e argumentista de "Taxi Driver" e "O Touro Enraivecido" Paul Schrader foi ainda mais longe, dizendo que lhe permitiu continuar a fazer filmes.

De facto, os dois juntaram-se logo a seguir em "O Aviador" (2004), sobre a vida do excêntrico milionário Howard Hughes, outro projeto ambicioso que resultou em 11 nomeações aos Óscares e cinco estatuetas, mas com Scorsese a perder novamente na sua categoria para Clint Eastwood por "Million Dollar Baby".

Foi o terceiro filme dos dois, "The Departed: Entre Inimigos" (2006), um 'remake' de "Infernal Affairs", de Hong Kong, outra vez envolvendo gangsters, mas em Boston e com Jack Nicholson num papel originalmente pensado para De Niro, que finalmente colocou fim ao escândalo: além do Óscar de Melhor Filme, Scorsese à sexta nomeação ganhou Melhor Realização, anunciada pelos amigos Coppola, Lucas e Spielberg.

Sem abrandar o ritmo, mas um "Silêncio" levou-o para mais longe do grande ecrã

"Silêncio"

Scorsese tinha 64 anos quando ganhou o primeiro (e até agora único) Óscar, numa idade em que tantos dos cineastas clássicos que admira e ajuda a promover em documentários e festivais se reformavam ou estavam artisticamente num trajeto descendente.

Pelo contrário, o fim da "maldição" dos Óscares parece tê-lo libertado para trabalhar ainda de forma mais intensa na arte das imagens e em vários formatos.

Além do crescente número de títulos a que ajudou a dar visibilidade na função de produtor executivo, veja-se algum do recente currículo mais alternativo: fez o monumental documentário "No Direction Home: Bob Dylan" (2005) e regressou para mais em "Rolling Thunder Revue: A Bob Dylan Story by Martin Scorsese" (2019); usou 16 câmaras pare registar dois concertos dos Rolling Stones e mesclou com imagens de arquivo desde o início da banda para "Shine a Light" (2008); foi produtor executivo e dirigiu o episódio-piloto da série "Boardwalk Empire" (2010); retratou Fran Lebowitz em "Public Speaking" (2010) e voltaram a encontrar-se para sete episódios da série documental "Pretend It's a City" (2021); lançou as comoventes três horas e meia de "George Harrison: Living in the Material World" (2011); co-dirigiu "A Letter to Elia", em homenagem ao cineasta Elia Kazan (2010), e "The 50 Year Argument" (2014) sobre a história e impacto da revista New York Review of Books; e foi co-criador e realizador do episódio-piloto da série de culto "Vinyl" (2016).

Pelo meio, continuaram outras grandes aventuras para o grande ecrã, como o quarto filme com Di Caprio em 2010, a adaptação do romance homónimo de Dennis Lehane "Shutter Island", em que trabalhou em marcas de alguns dos filmes mais emblemáticos de Hitchcock, como o clima claustrofóbico, o protagonista em posse de uma verdade negada por todos os que o rodeiam, a mensagem indecifrável e a ambiência de paranóia e suspeição.

A seguir, perdeu a sétima e oitava nomeações para o Óscar de Melhor Realização para Michel Hazanavicius ("O Artista") e Alfonso Cuarón ("Gravidade"), respetivamente com o inesperado "A Invenção de Hugo" (2011), o seu primeiro filme para toda a família e também em 3D; e "O Lobo de Wall Street" (2013), um reencontro especialmente memorável com DiCaprio para contar a delirante vida de excessos do corretor da bolsa Jordan Belfort.

"O Irlandês"

Este sucesso de "O Lobo de Wall Street" permitiu a Scorsese finalmente avançar com a adaptação do livro de Shūsaku Endō "Silêncio" (2016), um projeto com 28 anos muito pessoal sobre as raízes da fé religiosa, com Andrew Garfield e Adam Driver como dois jesuítas portugueses perseguidos pelo seu trabalho de evangelização no Japão no século XVII.

Num reverso da medalha, o filme foi um fracasso comercial, forçando-o a virar-se para as plataformas de streaming para conseguir financiar os filmes mais recentes, devido à incapacidade dos estúdios tradicionais: foi a Netflix que aceitou avançar com "O Irlandês" (2019), outro projeto de longa maturação sobre Frank “Irishman” Sheeran, assassino da máfia, responsável pela morte de 25 pessoas, incluindo a do líder sindical Jimmy Hoffa, cujo corpo nunca foi encontrado, promovendo o reencontro com De Niro e Joe Pesci 24 anos depois de "Casino", mas também com Harvey Keitel, e, finalmente Al Pacino, rejuvenescendo-os para contar uma história que atravessa décadas.

Scorsese aclamado na cerimónia dos Óscares que consagrou "Parasitas"

Sinal dos tempos, Scorsese só conseguiu negociar duas semanas de exibição em algumas salas de cinema nos EUA e poucos outros países antes de se tornar um "conteúdo" de prestígio na Netflix. Houve dez nomeações para os Óscares, incluindo a nona para Melhor Realização, mas nenhuma estatueta na noite a 9 de fevereiro de 2020 que consagrou o fenómeno sul-coreano "Parasitas", cujo realizador Bong Joon-ho, num dos momentos mais bonitos a cerimónia, o homenageou num dos seus discursos, levando o público no Dolby Theatre a levantar-se para um emocionante aplauso.

Em 2023, deverá chegar um novo filme: "Killers of the Flower Moon", sobre a história verídica do que aconteceu à nação índia Osage, que viu vários dos seus membros assassinados um a um no início dos anos 1920 após a descoberta de petróleo no seu território, no que se tornou um dos primeiros casos investigados pelo recentemente criado FBI.

Leonardo DiCaprio, Robert De Niro e Martin Scorsese

Será o primeiro encontro de Scorsese com os seus dois principais atores, DiCaprio (o sexto filme desde 2002) e De Niro (o nono desde 1973), à frente de um elenco onde se destacam Jesse Plemons, Lily Gladstone, Brendan Fraser ou John Lithgow. Mas este momento simbólico será visto por poucos no grande ecrã: o financiamento de 200 milhões de dólares veio da Apple TV.

A plataforma também acolherá o próximo projeto, também com DiCaprio: a adaptação do livro "The Wager: A Tale of Shipwreck, Mutiny and Murder" ["O Wager: Um Conto de Naufrágio, Motim e Assassinato", em tradução livre], de David Grann (que também escreveu "Killers of the Flower Moon"), sobre a história verídica da luta de 30 sobreviventes do naufrágio do navio da marinha britânica Wager em 1742, perto de uma ilha na costa do Brasil... alguns meses mais tarde, três chegam ao Chile e têm um relato diferente: os homens não eram sobreviventes mas amotinados, e enquanto estiveram presos na ilha, caíram na anarquia.

Muitas homenagens e uma “tristeza terrível” com a situação atual do cinema

Além da transição forçada para o streaming, aquele que também é o presidente da Film Foundation, uma organização não lucrativa dedicada à preservação dos filmes antigos, tem vindo a mostrar cada vez mais preocupação com... o futuro do cinema.

O defensor do formato clássico do filme, projetado numa grande tela e visto com companhia, tem-se mostrado inconformado com a desvalorização do que descreveu como uma "experiência espiritual da ordem da catarse".

"Existe uma grande saturação, especialmente como agora está o nosso mundo e em que nada realmente tem um significado. Por exemplo, as imagens estão por todo o lado. O cinema costumava ser uma edificação, ou mesmo na televisão, via-se num filme ou o que fosse. Devo dizer que muitos dos filmes de que estou ciente... e não vejo assim tantos dos novos nos últimos dois ou três anos, parei porque as imagens não significam nada", já dizia durante uma apresentação de "Silêncio" no outono de 2016.

E insistia: "Estamos completamente saturados de imagens que não significam nada. As palavras também não significam nada, são distorcidas e alteradas. Portanto, onde está o sentido? Onde está a verdade? Temos de nos livrar de tudo".

"Tudo pode ser resumido na palavra que agora está a ser usada: conteúdo. Todas as imagens dos filmes são agrupadas. Temos um filme, temos um episódio de TV, um novo trailer, temos um vídeo de como fazer um café, temos um anúncio do Super Bowl, temos 'Lawrence da Arábia', é tudo igual", reforçou ao receber um prémio em 2018, lamentando a desvalorização das imagens.

O lamento estendeu-se à existência dos sites agregadores de críticas como o Rotten Tomatoes ou o CinemaScore: "A ideia horrível que eles reforçam é que cada filme, cada imagem está aí para ser instantaneamente julgada e rejeitada sem dar aos espectadores tempo para verem. Tempo para ver, talvez para refletir e talvez tomar uma decisão por si. Portanto, a grande forma de arte do século XX, a forma de arte americana, é reduzida a conteúdo".

Scorsese com De Niro, Pesci e Pacino créditos: Empire

Defendendo que se deve conquistar a tecnologia atual "para que os artistas possam usar a tecnologia em vez de serem usados por ela", Scorsese chegou a tornar-se 'viral' em outubro de 2019 ao afirmar à revista Empire que os filmes da Marvel "não são cinema", comparando-os a "parques de diversão" onde os atores se "safavam" como podiam.

Perante as ondas de choque entre fãs e também do interior de Hollywood, Scorsese voltou a insistir em várias intervenções ("não é cinema, é outra coisa. Quer apreciem ou não, é outra coisa e nós não deveríamos ser invadidos por isso") e um mês depois, "despejou" tudo o que lhe ia na alma numa artigo de opinião para o jornal americano The New York Times que se confundia com um grande ensaio sobre o amor pelo cinema.

Rejeitando que a sua opinião fosse um insulto ou a manifestação de "ódio" à Marvel, reconheceu que muitas sagas de cinema são feitas por "pessoas de talento e mérito artístico considerável" e o resultado pode ser visto no grande ecrã: "O facto de que os filmes em si não me interessam é uma questão de gosto pessoal ou temperamento",

Reconhecendo que, se fosse mais jovem, talvez ficasse entusiasmado com eles e até tentasse fazer um, mas esclarecia que "cresci quando cresci e desenvolvi um sentido de cinema, do que eram e do que podem ser, tão distante do universo Marvel como nós na Terra estamos do sistema Alpha Centauri".

"O cinema era sobre revelação, revelação estética, emocional e espiritual. Era sobre personagens, a complexidade das pessoas e das suas naturezas contraditórias e às vezes paradoxais, a maneira como elas podem magoar e amar-se umas às outras e de repente confrontarem-se com elas mesmas", continuava a reflexão, que reconhecia que "muitos dos elementos que definem o cinema como o conheço estão nos filmes da Marvel", mas "o que não está é a revelação, o mistério ou genuíno perigo emocional. Nada está em risco. Os filmes são feitos para satisfazer um conjunto específico de exigências e são projetados como variações num número finito de temas".

"São sequelas em nome, mas 'remakes' em espírito e tudo neles é oficialmente sancionado porque não pode realmente ser de outra forma. Essa é a natureza das sagas modernas de cinema: estudadas no mercado, testadas com público, avaliadas, modificadas, revestidas e remodeladas até estarem prontas para o consumo", continuava antes de salientar que eram o oposto dos filmes de cineastas como Paul Thomas Anderson, Claire Denis, Spike Lee, Ari Aster ou Kathryn Bigelow, em que "sei que vou ver algo absolutamente novo e ser levado a áreas de experiência inesperadas e talvez até inomináveis".

Dos filmes específicos da Marvel passava para a situação em geral: "É um período perigoso na exibição de filmes e existem menos cinemas independentes do que nunca. A equação mudou e o 'streaming' tornou-se o principal sistema de fornecimento [de conteúdos]. Ainda assim, não conheço um único cineasta que não queira preparar filmes para o grande ecrã, para serem projetados perante público nos cinemas. Isso inclui-me a mim e estou a falar como alguém que acabou de fazer um filme para a Netflix", explicava, acrescentando que gostaria que "O Irlandês" estivesse em mais salas e por mais tempo, mas "a verdade é que, na maioria dos multiplexes, as salas estão preenchidas com filmes de sagas".

Scorsese recordava então que a indústria cinematográfica mudou em todas as frentes nos últimos 20 anos, "mas a mudança mais ameaçadora aconteceu pela calada da noite: a eliminação gradual, mas sistemática, do risco. Hoje, muitos filmes são produtos perfeitos fabricados para consumo imediato. Muitos deles são bem feitos por equipas de pessoas talentosas. Mesmo assim, falta-lhes algo essencial ao cinema: a visão unificadora de um artista específico. Porque, é claro, o artista específico é o maior factor de risco de todos".

"Infelizmente, a situação que temos agora é a de dois campos distintos: há entretenimento audiovisual mundial e cinema. Eles ainda se sobrepõem de tempos em tempos, mas isso está a tornar-se cada vez mais raro. E receio que o domínio financeiro de um esteja a ser usado para marginalizar e até menosprezar a existência do outro. Para quem sonha em fazer filmes ou está apenas a começar, a situação neste momento é brutal e inóspita para a arte. E o simples ato de escrever estas palavras enche-me de tristeza terrível", concluía o artigo que também se tornou viral.

O pessimismo manteve-se e terá sido reforçado pela pandemia: há pouco mais de um mês, ao receber mais um prémio Festival de Cinema de Nova Iorque, voltou a criticar o atual estado do cinema por causa da obsessão "repulsiva" de Hollywood com as receitas de bilheteira.

"Este festival é uma casa espiritual para cineastas e artistas, [o que é] especialmente importante agora que o cinema é desvalorizado, humilhado, menosprezado de tosos os lados", começou por dizer.

Durante o evento, o cineasta foi pontuando as suas palavras de amor pelo cinema em geral com essas manifestações de desilusão.

"Desde os anos 1980 que existe um foco nos números que é mais ou menos repugnante. Claro, o custo de um filme é uma coisa. Percebo que um filme custa um certo valor, eles [os estúdios] esperam pelo menos recuperar o valor, mais um ganho”, esclarecia.

"Mas o ênfase agora está nos números, custo, fim de semana de estreia, quanto é que fez nos EUA, quanto é que fez na Inglaterra, quanto é que fez na Ásia, quanto é que fez em todo o mundo, quantos espectadores é que teve", acrescentava.

"Enquanto cineasta, enquanto pessoa que não consegue imaginar a vida sem cinema, acho isso sempre realmente um insulto, [mas] essa ideia não tem lugar no Festival de Cinema de Nova Iorque. E aqui está a chave também com isto: aqui não há prémios. Não é preciso competir. Aqui apenas tem que amar o cinema. É só cinema", concluiu.

E é um cinema que ficará ainda mais pobre depois de ele partir...

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