Participou em filmes míticos como "Pedro o Louco" ou "Viver a sua Vida" e rodou com alguns dos maiores cineastas do mundo nos anos 60 e 70. Antiga musa e companheira de Jean-Luc Godard, Anna Karina morreu aos 79 anos, vítima de cancro.
"A Anna morreu ontem num hospital de Paris vítima de cancro. Ela era uma artista livre e única", afirmou o seu agente Laurent Balandras à Agência France-Press, acrescentando que ela faleceu em Paris, na companhia do seu quarto marido, o realizador americano Dennis Berry.
Em maio último, Anna Karina deveria ter estado em Lisboa, para estar presente numa retrospectiva da sua obra organizada pela Cinemateca Portuguesa e pelo Festival IndieLisboa, mas acabou por ser forçada a cancelar a viagem em cima da hora por motivos de doença.
Franck Riester, o Ministro da Cultura Francês, já afirmou que "Hoje, o cinema francês ficou orfão. Perdeu uma das suas lendas".
Uma carreira de prestígio, de Godard a outros cineastas de renome
Anna Karina nasceu na Dinamarca em 1940, teve uma juventude turbulenta e começou muito jovem a tentar a sorte no mundo do espectáculo.
Aos 17 anos vai à boleia até Paris, onde começa a fazer-se notar como modelo (terá sido a lendária Coco Chanel a dizer-lhe para deixar de usar o seu nome de baptismo, Hanne Karin Bayere, e optar por Anna Karina), onde inicia uma relação afectiva e profissional com Jean-Luc Godard, que a tornará um dos símbolos do movimento de que ele será um dos principais motores: a "Nouvelle Vague", que renovaria a linguagem do cinema ao longo da década de 60.
Após recusar um pequeno papel na primeira longa-metragem do cineasta, "O Acossado", Karina participou nos mais lendários filmes do realizador dessa década: "O Pequeno Soldado" (1960), "Uma Mulher é Uma Mulher" (1961), "Viver a sua Vida" (1962, que lhe valeu o troféu de Melhor Atriz no Festival de Berlim), "Bando à Parte" (1964), "Pedro o Louco" (1965), "Alphaville" (1965) e "Made in USA" (1966).
A dupla tornou-se mítica nos anais do cinema e, para lá da celebridade que a envolveu naquela década, ainda hoje é considerada uma das parcerias criativas mais frutuosas da história do cinema.
Em entrevista à AFP em 2018, a atriz falou sobre o seu relacionamento com Godard. "Nós amávamo-nos muito. Mas era difícil viver com ele", admitiu. "Era alguém que podia dizer 'vou buscar um cigarro' e voltar três semanas depois. Era uma época em que não havia smartphone, nem atendedor de chamadas", disse.
O relacionamento foi marcado por uma tragédia: Karina estava grávida e perdeu o filho. A última vez que o casal se viu foi há mais de 20 anos. Desde então, não houve contacto.
"Ele está na Suíça e não abre a porta", disse à AFP. "Não, não fico triste. Afinal, é a vida dele", acrescentou.
O casamento terminaria em 1965, mas a carreira de Karina não parou alinhando projeto atrás de projeto com realizadores de prestígio.
Além de já ter participado em "Duas Horas na Vida de Uma Mulher", de Agnés Varda, em 1962, e "A Ronda do Amor", de Roger Vadim, em 1964, a atriz brilhou a seguir em "A Religiosa (1966), de Jacques Rivette, "O Estrangeiro" (1967), de Luchino Visconti, "Michael Kohlhaas, o Rebelde" (1969), de Volker Schlondorff, "Laughter in the Dark" (1969), de Tony Richardson, "Justine" (1970), de George Cukor e Joseph Strick, ou "Roleta Chinesa" (1976), de Rainer Werner Fassbinder.
Na final da década de 60, Karina teve também os seus primeiros sucessos na área da música, com o enorme sucesso dos temas "Sous le soleil exactement" e "Roller Girl", de Serge Gainsbourg, oriundos do musical "Anna", que a atriz protagonizou com Jean-Claude Brialy.
A atriz regressaria à música várias vezes ao longo da sua carreira, em filmes e em discos, com o principal do seu trabalho nesta área compilado em "Chansons de films" (2004) e no mais recente "Je suis une aventurière" (2018).
Em 1973, Karina estreou-se na realização com "Vivre Ensemble", que também escreveu, produziu e protagonizou, e que foi seleccionado para a Semana da Crítica do Festival de Cannes. "É um retrato da minha juventude. Vi pessoas à minha volta afundar e morrer", declarou à AFP na altura. Contudo, só voltaria à realização em 2008, com o road-movie "Victoria", que também escreveu e protagonizou.
A sua carreira a partir dos anos 80 foi mais esparsa e teve menos impacto, destacando-se as suas participações em "A Ilha do Tesouro" (1985), de Raoul Ruiz, parcialmente rodado em Portugal, "A Obra ao Negro" (1987), de André Delvaux, "Alto Baixo Frágil" (1995), de Jacques Rivette, e "A Verdade Sobre Charlie" (2002), de Jonathan Demme.
Além da atividade intensa na área do cinema e da música, e da marca que deixou como ícone da moda nos anos 60 pelo seu modo irreverente de vestir, Karina também escreveu quatro livros, o primeiro dos quais associado ao primeiro filme que realizou: "Vivre ensemble" (1973), "Golden City" (1983), "On n'achète pas le soleil" (1988) "Jusqu'au bout du hasard" (1998).
O seu estatuto de mito nunca decresceu, e foi sublinhado em 2018, quando partilhou com Jean-Paul Belmondo o cartaz da 71ª edição do Festival de Cinema de Cannes, numa imagem de "Pedro, o Louco", ano em que "Vivre Ensemble" foi reposto em versão restaurada, e em que lançou o disco de canções "Je suis une aventurière".
Depois de Godard, Karina teve mais três casamentos: primeiro com os cineastas Pierre Fabre e Daniel Duval e, em 1982, com o americano Dennis Berry.
Artigo atualizado às 14h15.
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