
Na sua obra mais recente, "Calle Málaga" ("Rua Málaga", em tradução literal), a realizadora marroquina Maryam Touzani reconecta-se com as suas raízes através de uma história protagonizada por Carmen Maura que fala de memória, identidade e renovação.
Maura interpreta María Ángeles, uma espanhola que vive em Tânger, onde passou toda a sua vida, e que recebe a visita da filha Clara (Marta Etura), que vive em Madrid e não vê há algum tempo.
Mas para María Ángeles, que se prepara cuidadosamente para a chegada da filha à cozinha, a visita de Clara é um banho de água fria quando lhe diz que precisa de dinheiro e que o verdadeiro motivo da viagem é vender o apartamento da mãe e que esta vá viver com ela em Madrid.
O filme "nasceu" de uma perda, a da mãe, que faleceu há dois anos, explica a realizadora em entrevista à agência France-Presse (AFP) no Festival de Veneza, onde o filme foi exibido.
Na conversa, em francês, intercalam-se palavras e expressões espanholas, sobretudo quando Touzani fala da avó ou dos tios, ou de Carmen Maura, em quem vê o olhar de uma "menininha traquina".
Segundo conta, foi com a mãe e a avó, que era da Andaluzia, que falou castelhano.
"Era realmente o nosso laço (...) Quando a minha mãe se foi embora, na minha mente, ainda conversava com ela na língua que nos unia."
"Não era que dissesse a mim mesma: 'Vou fazer um filme em castelhano', mas sim que precisava de continuar a ouvir, sentindo o cheiro da comida que a minha mãe preparava: as suas tortilhas, os seus croquetes...", esclarece a realizadora, popularizada internacionalmente por "O Azul do Cafetã" (2022).
"E acho que também é porque tinha essa vontade de transmitir tudo o que a minha avó me transmitiu através da minha mãe", acrescenta.

Ao ouvir a cineasta falar tão docemente dos seus antepassados, rapidamente se compreende a importância dos grandes planos do filme, em que uma Carmen Maura focada e sedutora prepara croquetes, com a música de María Dolores Pradera em fundo.
Para ambientar-se na cidade, Maura, de 79 anos, mudou-se para Tânger algumas semanas antes do início das filmagens.
O filme, que tem o nome da rua de Tânger onde a cineasta cresceu, capta todo um universo com o qual se queria reconectar e que faz parte da sua identidade, "construída a partir de muitas coisas".
"Podemos ser duas coisas ao mesmo tempo; é a mistura de tudo isto que também pode ser uma fonte de riqueza", afirma, lamentando "que, por vezes, as pessoas tenham a necessidade de nos definir, de nos rotular".
Perante o facto consumado apresentado por Clara, a proprietária legal do apartamento desde a morte do pai, María Ángeles decide resistir, extraindo força da fraqueza e encarando com humor uma situação dolorosa.
Ao escrever a história, Touzani pensou nos muitos amigos da avó, nos muitos espanhóis que viu "permanecer em Tânger até ao último suspiro porque se sentiam profundamente ligados àquela cidade".
"Não escrevi [o argumento] a pensar na Carmen Maura, [mas] quando a conheci e olhei para os seus olhos pela primeira vez, senti algo muito bonito, muito forte na sua personalidade", admite Touzani. "Senti no seu olhar que mantinha viva a menina dentro dela."
"É uma mulher com muita personalidade, muito poderosa, um pouco como María Ángeles, que revela a sua força interior", acrescenta.
Através desta personagem, Touzani queria "falar sobre a velhice", mas "de uma forma diferente".
"Muitas vezes, falamos da velhice de uma única forma, como algo sombrio, frágil. Ou caricaturamo-la, o que é depreciativo. Queria falar da velhice de uma forma humana, para que María Ángeles quebrasse o padrão", observa.
"Queria celebrar a velhice, queria mostrar aqueles corpos envelhecidos que muitas vezes optamos por esconder", diz.
"Envelhecer é uma verdadeira bênção, um privilégio", afirma, e defende a vida como "uma renovação constante, se nos abrirmos o suficiente [a ela], se deixarmos que nos dê coisas".
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