Disse um dia que não era uma lenda, que para se ser uma lenda era preciso estar morta. Se assim é, então a lenda começa agora com a morte de
Lauren Bacall na manhã de terça-feira, vítima de derrame cerebral. Tinha 89 anos e, graças à sua sensual, intensa e forte personalidade, e aquele olhar fatal, foi durante sete décadas uma das verdadeiras estrelas do cinema norte-americano.

Lauren Bacall, nome artístico de Betty Joan Weinstein Perske, nasceu em Nova Iorque a 16 de setembro de 1924. Começou a carreira como modelo e tinha projetado uma carreira nos palcos quando, por puro acaso, entrou no mundo do cinema: a mulher de
Howard Hawks, Slim Keith, reparou nela numa capa da revista Harper's Bazaar e mostrou ao marido, que fez um telefonema para Nova Iorque para a trazerem a Hollywood para um teste. Conta-se que, para além da figura esguia, a sua voz era tão profunda e sensual que foi contratada nesse instante pelo realizador que, não gostando do nome Betty, lhe fez o batismo artístico. A seguir, moldou-lhe a personalidade.

Na cerimónia em que recebeu o Óscar Honorário, em novembro de 2009, Bacall recordou que «era espantoso as pessoas com quem trabalhei, algumas delas as melhores entre as melhores de sempre». E admitiu que quando Hanks lhe disse que a queria juntar ou a
Humphrey Bogart ou Cary Grant, ela não ficou nada impressionada com o primeiro, ao contrário de Grant: «Agora, isso é que é falar!». Mas acabaria por ser Bogart, com Hanks a dizer-lhe que tinha encontrado uma rapariga que seria ainda mais insolente do que ele. Reza a lenda que quando a viu sair do gabinete de Hanks, se lhe dirigiu com estas palavras: «Vi o seu teste. Vamos divertir-nos os dois».

Em
«Ter ou Não Ter» (44), Bogart era um homem da ilha de Martinica que acabava por se envolver na II Guerra Mundial por causa de uma «mulher fatal», Bacall naturalmente, que lhe perguntou se sabia assobiar. Apenas com 19 anos, era evidente que estava destinada ao estrelato, mas também foi possível ver uma história de amor que acabou por extravasar para a vida real: os dois casaram em 1945.

Infelizmente, muitos dos filmes que Lauren Bacall fez sob contrato não estiveram ao nível da sua estreia: por exemplo, ela diria na sua autobiografia «By Myself» (78) que a carreira nunca recuperou complemente da experiência do desastroso «Confidential Agent», ao lado de Charles Boyer, o seu segundo trabalho. Por outro lado, os outros três títulos que fez com Humphrey Bogart para explorar a química seriam suficientes para assegurar um lugar de destaque na história do cinema: incendeiam o ecrã com
«À Beira do Abismo» (46), também de Hanks, foi o melhor, a que se juntaram
«Prisioneiro do Passado» (47) e
«Paixões em Fúria» (48), de John Huston, este com um elenco de gigantes: Edward G. Robinson, Lionel Barrymore e Claire Trevor.

A dedicação à família que estava a formar com Bogart prejudicou a evolução da carreira, como a própria reconheceu. Além disso, dura, impaciente com a incompetência e insatisfeita com a qualidade dos argumentos, foi suspensa pelo estúdio 12 e ganhou a reputação de difícil. Ainda assim, até à morte de Bogart em 1957, altura em que se começou a afastar gradualmente do cinema, destacam-se
«Duas Mulheres... Dois Destinos» (50), em que contracenava com Kirk Douglas e Doris Day,
«Como Conquistar um Milionário» (53), fazendo parceria com Marilyn Monroe e Betty Grable,
«Escrito no Vento» (56), de Douglas Sirk, ao lado de Rock Hudson, Dorothy Malone e Robert Stack, e
«A Mulher Modelo», de Vincent Minnelli, com Gregory Peck, um dos seus parceiros preferidos. A ela também podemos agradecer muitas das imagens da rodagem de «A Rainha Africana» (52), quando acompanhou o marido, Huston e Katharine Hepburn a África.

Após o sucesso de «Sangue Sobre a Índia» (59), de J. Lee Thompson, muda-se para Nova Iorque. Envolve-se com Frank Sinatra, mas os feitios entram em choque; casa-se com o ator Jason Robards, que tinha uma forte parecença com Bogart, até demais: os problemas deste com o álcool resultam em divórcio. Com o sucesso em peças de teatro, vêmo-la pouco no cinema: está em bom plano em
«Harper, Detetive Privado» (66), ao lado de Paul Newman, e como uma das muitas estrelas de
«Um Crime no Expresso do Oriente» (74), de Sidney Lumet, bem como no «último hurrah» de John Wayne, o magnífico
«O Atirador» (76), de Don Siegel, mas um raro papel como protagonista, em «O Admirador» (81), de Edward Bianchi, contracenando com James Garner, foi um fracasso.

Depois de participações em «Mr. North, um Homem de Sonho» (88),
«Misery - Capítulo Final» (90) ou
«Prêt-à-Porter» (94), regressa ao primeiro plano com
«As Duas Faces do Espelho» (96), ofuscando Barbara Streisand e Jeff Bridges e recebendo a sua primeira nomeação para o Óscar. A derrota para Juliette Binoche em «O Paciente Inglês» é uma das maiores surpresas da história dos prémios da Academia.

Continuou a trabalhar de forma regular até ao fim e para além da espantosa e bizarra participação como «ela própria» na série «Os Sopranos», os seus trabalhos em
«Dogville»,
«Manderlay»,
«Birth - O Mistério» e
«O Acompanhante», às ordens de realizadores rebeldes como Lars von Trier, Jonathan Glazer e Paul Schrader, são dignos exemplos de um talento e personalidade que nem sempre a indústria soube aproveitar.

Nuno Antunes