Anomalias como "Top Gun: Maverick" e "Avatar: O Caminho da Água" à parte, a "mediocridade" de "Bilhete para o Paraíso", "Um Homem Chamado Otto" e "80 for Brady" (inédito em Portugal) pode ser a resposta para salvar as salas de cinema numa era pós-pandemia onde apenas grandes produções de super-heróis, algumas sequelas e filmes de terror parecem resistir melhor ao impacto das mudanças dos hábitos do espectadores.

Esta é a a conclusão de Owen Gleiberman, o principal crítico de cinema da revista de referência norte-americana Variety, que num artigo de opinião sustenta que os três têm em comum serem construídos à volta de estrelas de cinema à antiga (Julia Roberts e George Clooney em "Bilhete...", Tom Hanks em "Um Homem..." e Jane Fonda, Sally Field, Lily Tomlin e Rita Moreno em "Brady") e se terem tornado "sólidos sucessos" a nível médio nas bilheteiras dos EUA.

Isso é "um facto que muitos notaram num momento em que as ofertas mais saborosas da temporada de prémios ('Tár', 'Os Fabelmans', 'Os Espíritos de Inisherin') desiludiram profundamente". E, acrescenta o crítico, todos são "desafiadoramente medíocres" e isso "é o segredo do seu sucesso".

Pedindo desculpa por parecer "totalmente paternalista", Owen Gleiberman diz que não é diferente de muitos espectadores e não detesta automaticamente a mediocridade. "Por vezes", até a defende: "a mediocridade tem o seu lugar no multiverso dos filmes e sempre teve. Diria que tem sido uma fatia considerável do bolo do cinema - e que os filmes, como indústria, dependem da mediocridade mais do que gostaríamos de pensar".

Também defende que os filmes não são igualmente medíocres: "Bilhete para o Paraíso" é descrito como uma comédia romântica 'kitsch' "sem ilusões" sobre o que é, construída à volta de dois profissionais veteranos para deliciar os espectadores; "Um Homem Chamado Otto" desperdiça em situações artificiais e forçadas "uma premissa promissora" (Tom Hanks como um homem distorcido pelo cinismo); e "80 for Brady" tem "os seus momentos engraçados, mas é principalmente uma confortável e básica 'sitcom' com estrelas para um público demasiadas vezes ignorado".

"Um Homem Chamado Otto"

Para este crítico da Variety, os filmes medíocres são "a chave mágica, um caminho para o futuro das salas de cinema que não foi devidamente reconhecido".

Sucessos que levaram o público adulto às salas em 2022, como "Top Gun: Maverick", "Elvis" e mesmo "Tudo em Todo o Lado ao Mesmo Tempo", são descritos como "símbolos da viabilidade e transcendência da experiência de ir ao cinema", mas "anomalias" que não permitem generalizações nem são facilmente repetíveis.

"Também eu estou desesperado por ver mais filmes como esses, mas o que também precisamos são os filmes que colocam em movimento a engrenagem da experiência de ver cinema em sala: os filmes de fórmula previsível para adultos nos quais o público pode confiar, que os podem manter viciados no ato de ir ao cinema", escreve.

"Para mim, o aspeto mais doloroso da temporada de cinema do outono — estou tentado a chamar-lhe trágico — é ver filmes extraordinários que desiludiram nas bilheteiras, como 'Tár' ou 'Os Fabelmans', tratados como se fossem extra-terrestres subtis, como se houvesse algo neles não suficientemente apelativo", acrescenta.

Esse tipo de atitude passa ao lado de um problema que existe: "o público adulto que ainda quer ver [nos cinemas] filmes que não sejam 'blockbusters' de fantasia (Marvel, 'Mundo Jurássico'), ou o fenómeno de terror da semana, tem sido drasticamente mal servido". E a consequência é que deixaram de ir regularmente às salas.

Apesar de se ter tentado vender como "um novo normal, quase uma nova ideologia" que já não é preciso sair de casa para trabalhar ou ir ao cinema e isso ainda não tenha perdido força, o crítico nota que 2022 também foi o ano em que as pessoas finalmente começaram a habituar-se a ir outra vez ao cinema. E o que vai mantê-las lá são os filmes confortáveis e convencionais que satisfaçam os seus gostos.

Sempre foi assim, recorda, mesmo na era clássica dos estúdios nas décadas de 1930 e 1940, ou na revolucionária década de 1970 do cinema americano, onde filmes como "O Padrinho" ou "Um Dia de Cão" foram sucessode bilheteira com conviveram com outros como "Fuga do Planeta dos Macacos", "A Torre do Inferno" ou "Rollerball".

"Mas a indústria, ao deixar cair no esquecimento o filme de médio orçamento médio para adultos, acabou por ficar numa dicotomia de escolha de extremos loucos: atrações de efeitos especiais para miúdos (ou o miúdo em todos nós) versus... aqueles filmes altamente seletivos e de elite com que os críticos se deliciam na temporada de prémios. Não é uma escolha saudável", diz Owen Gleiberman, que compara a uma experiência de sair para ir a um restaurante e as opções serem 'fast food' ou um local com uma ambição culinária digna da estrela Michelin.

"É fácil gozar com a mediocridade, mas na verdade ela é o grande unificador. Basta olhar para toda a televisão medíocre com que as pessoas relaxam por esse motivo", pelo que os espectadores vão aparecer se existirem mais filmes como "Bilhete para o Paraíso", "Um Homem Chamado Otto" e "80 for Brady". E isso "mudaria todo o espírito de ir ao cinema".

"Não o posso provar, mas desconfio que um público que se tenha habituado a ir ao cinema estaria mais disponível, no ritmo das coisas, para ir ver 'Tár' os 'Os Fabelmans'. No seu melhor, ir ao cinema pode ser uma experiência religiosa, mas na sua forma mais quotidiana e sustentada, ir ao cinema é aquela coisa reconfortantemente desleixada conhecida como hábito. A indústria precisa começar a fazer filmes que os adultos queiram ter o hábito de ver", conclui.