Entre os destaques para o SAPO Mag na quarta-feira estão um dos filmes mais belos de Lucrecia Martel, “A Mulher Sem Cabeça”, a diversificada e vivida aproximação documental da peculiar figura de um dos inventores do "free jazz" em "Milford Graves Full Mantis", e um relato de um transsexual sobre tristezas e alegrias no filme da Competição "Eu Lembro mais dos Corvos". Para encerrar uma acidentado passeio pelos prazeres e bizarrices das curtas da Boca do Inferno.

Os mortos e os fósseis

Depois dos médicos de "A Rapariga Santa", os filmes sobre as pessoas "comuns" de Lucrecia Martel agora escolhem uma dentista, Verónica (María Onetto) como protagonista. Nas suas classes médias, pequenos dramas podem esconder grandes tragédias, bem como um estatuto social fossilizado. Neste caso, a sua heroína conduz por uma pequena estrada interior sem movimento. Quando vai atender o telemóvel sente que o carro choca com algo que ela não distingue. Pelo espelho retrovisor vê um cão morto; mas no vidro do carro estão marcas de pequenas mãos humanas.

Num filme de Martel essa premissa de “thriller” certamente não significa que haverá uma narrativa linear e algo semelhante ao que já se encontra às dúzias no cinema comercial. Mesmo assim, esse fio condutor serve para levar o filme – que, no entanto, enriquece noutra perspetiva.

O início é representativo: no momento do acidente, a câmara não larga Verónica. Não há planos gerais para situá-la num espaço abrangente nem tampouco um olhar subjetivo. O que ela vê permanece fora de campo, mas "como" ela vê é o que interessa. Pois este é o início de um processo de desintegração mental e simbólica. Em sintonia com o título do filme, a protagonista vai entrando num estado de desfragmentação da identidade e os outros vão quase impercetivelmente tomando as decisões por ela. Ao mesmo tempo, a perceção do mundo exterior vai sendo alterada – ao ponto de não saber se o que eventualmente viu ou viveu realmente aconteceu (conforme sugerido no último terço).

A situação também evolui ao ponto de ela ter dificuldade em reconhecer-se: enquanto todos parecem notar o mau estado do seu cabelo (uma metáfora recorrente nos filmes da realizadora), ela tenta uma transformação e um rejuvenescimento quando aparece com ele colorido e com novo penteado. No todo a alteração é para pior: Martel retoma pressupostos de "O Pântano" e com os seus signos de fossilização (há uma cena brutal com um animal morto na cozinha) ligados também à questão social resume o tema num diálogo sugestivo. Quando Verónica vai visitar uma tia com Alzheimer e a sua casa infestada de "mortos" – espíritos que por lá "transitam", esta última diz: “Se vocês os ignorar, eles vão embora. Eu preferia a modernidade. Aqui você move-se e tudo à volta guincha".

"Olhe para o jardim lá fora… não o analise, apenas entre nele"

Já Milford Graves, baterista que começou a sua carreira nos anos 60 e é considerado um dos inventores do “free jazz”, está mais conectado ao mundo dos vivos. Se na história ele é considerado o homem que libertou a batida dos tempos definidos, ele aqui conta como estas alterações estão impregnadas de uma base filosófica e experimental.

Jake Meginsky e Neil Young viram estrear em Roterdão essa obra que, de toda a secção IndieMusic, é das que mais tentam fazer jus, em termos de linguagem cinematográfica, a um homem que conjuga em si a rebelião com a forma. O filme desenrola-se entre iconografia sugestiva (máscaras e estátuas, africanas ou pré-Clássicas), passagens em preto-e-branco, cortes abruptos, uso do "split screen", performances a solo e um repouso no jardim onde Graves aparece pela primeira vez manifestando as suas filosofias.

"Milford Graves Full Mantis" exprime ainda, com longas filmagens amadoras feitas durante acontecimentos remotos, os seus conceitos inventando uma nova forma de artes marciais ou tentando atingir a emoção de crianças autistas no Japão com uma performance visceral.

Uma descoberta que o deixa particularmente satisfeito é o álbum “Heart Recordings”, onde um médico gravou os batimentos do coração. Graves fez os seus próprios: há de ser um dos primeiros momentos musicais saídos de uma experiência com um eletrocardiograma. Isso para estipular que se os batimentos do coração não são ordenados, porque é que a percussão haveria de ser?

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Eu Lembro mais dos Corvos

Não seria fácil Júlia Katharine, que tenta contar a sua história diante da câmara de Gustavo Vinagre, lembrar-se de pássaros mais amenos. Ela está a contar a história de um tempo onde não havia definições nem sentimentos de abuso perante o que hoje se qualificaria facilmente como pedofilia. Também nos anos 80 não havia um termo que enquadrasse o mal-estar com o seu corpo e a inevitável ostracismo social.

Além de tragédias fala-se de sexo, ao mesmo tempo que se recriam cenários para referir-se a Yasujiro Ozu. Não é à toa: Júlia Katharine (o último nome é uma referência a Katharine Hepburn) refugiou-se desesperadamente no cinema para conseguir suportar um quotidiano duríssimo.

Gustavo Vinagre, que já circulou em Portugal com uma curta-metragem no IndieLisboa e uma média-metragem no Queer Lisboa, filma estas e outras histórias de forma “ininterrupta” – usando de todos os recursos dinamizadores que se lembra para obedecer os limites que ele próprio se impôs: filmar num único cenário durante uma única noite. Desta conversa, que não exclui o espontâneo, a timidez e o dialogar com o cineasta, Vinagre propôs extrair um relato ao mesmo trágico e transgressor dos muitos tabus que ainda assombram o mundo.

Esquadrões cantantes, felinas vingativas, nudistas na selva: as curtas da Boca do Inferno

Os prémios de surpresa e elaboração entre as sete curtas-metragens que compõem uma sessão única da secção Boca do Inferno vão sem dúvida para os esforços do germânico Daniel Vogelmann no seu "Hard Way – The Action Musical". O filme conta a história de uma guerra entre um esquadrão estilo “SWAT”, aqui chamados de “BEAT”, e um gangue liderado pela “Mother” e cujos membros são as “Children”. O problema aqui é que não se podem disparar tiros contra o grupo rival se ele estiverem… a cantar ou a dançar! Para além da exploração da premissa, o tratamento traz um impressionante trabalho de criação visual, cinemática e sonora.

A ementa de piadas e bizarrices aparecem pela via da animação no suíço “Coyote”, onde a morte da família por lobos leva o protagonista ao encontro do próprio Diabo, e no dinamarquês “Cream”, com toques de escatologia. Sugestões terroríficas estão presentes no irlandês “Catcalls”, a fantasia favorita de todas as mulheres contra os “porcos chauvinistas”, e no norte-americano “Vanitá”, que estabelece a relação entre beleza interior/exterior através de um cenário, um espelho e uma protagonista. Por fim, duas anedotas francesas: “Hash Key” e “La Vie Sauvage”, este último podendo ser descrito como uma comédia no meio de um parque temático, com muita nudez e ironia.