O realizador e "homem dos sete ofícios" David Lynch faz 77 anos esta sexta-feira.
Com algumas das obras mais originais, enigmáticas e surrealistas, no cinema e na TV, durante cinco décadas, que lançaram um estilo cinematográfico conhecido como “lynchiano”, ele é um dos principais cineastas saídos da sua geração, cuja influência se prolongou pela música, pintura, fotografia, vídeo experimental e muitos outros interesses.
Filho de uma família tradicional da classe média, com uma infância itinerante no interior dos EUA e sem grande interesse pela escola, mas com o sonho de ser pintor, David Lynch especializou-se numa academia de arte. Mais tarde, largou o curso e partiu para uma viagem à Europa à procura de inspiração para o seu trabalho.
De volta ao país de origem, viu-se na obrigação de trabalhar em ramos que não lhe agradavam para ajudar a família. Ao mesmo tempo, resolveu retomar os estudos, entrando na Academia de Belas Artes da Pensilvânia.
Totalmente envolvido com as artes plásticas, isso refletiu-se na linguagem dos primeiros trabalhos, que já eram bastante provocadores: esta foi a fase das curtas-metragens "Six Men Getting Sick" (1966), "The Alphabet" (1968), "The Grandmother" (1970) e "The Amputee" (1974).
"The Grandmother" valeu-lhe uma bolsa do American Film Institute, com a qual começa a trabalhar numa primeira-longa-metragem, ocupando-se de quase tudo: realização, produção, argumento, música, efeitos especiais e som. Uma tarefa difícil que ocupou seis anos da sua vida devido às dificuldades de financiamento, inclusivamente ultrapassando o fim do seu primeiro casamento, de onde nasceu a filha Jennifer Chambers Lynch (que se tornaria uma realizadora também com gosto pelo bizarro, como se viu no 'clássico trash' "Boxing Helena", de 1993).
História de Henry Spencer, que vivia numa cidade industrial abandonada, num cenário quase apocalíptico, cuja namorada dava à luz um bebé mutante antes de abandonar ambos, "Eraserhead" (1977), um título mais conhecido em Portugal do que o "No Céu Tudo é Perfeito" que lhe foi atribuído, foi considerado um trabalho difícil: na época da estreia poucas pessoas se mostraram interessadas no filme a preto e branco onde, além da arte em 'stop-motion', já misturava aquele surrealismo, obsessões, ironia e desespero.
A popularidade de "Eraserhead" chegou com as sessões de meia-noite nos cinemas e catapultou-o instantaneamente para um culto. E quem gostou do que viu foi um tal de Mel Brooks, que viu em Lynch um "James Stewart de Marte" e o convidou para levar ao grande ecrã "O Homem Elefante".
Baseado na história verídica de John Merrick (interpretado por John Hurt), um inglês do século XIX que sofria de Síndrome de Proteous, uma doença congénita que provoca a desfiguração, e com Anthony Hopkins como o amável médico vitoriano que o tentava ajudar a recuperar a dignidade perdida, ainda a preto e branco, foi um raro sucesso comercial na carreira de Lynch e muito bem recebido pela crítica, culminando em oito nomeações para os Óscares, incluindo duas pessoais, Melhor Realização e Argumento Adaptado.
A carreira estava lançada e nunca se saberá o que podia ter acontecido se tivesse aceite o convite de George Lucas para dirigir o terceiro "Star Wars" ("O Regresso de Jedi", 1983), mas o que aconteceu a seguir foi penoso: foi parar ao mundo da ficção científica de Frank Herbert e de "Dune", uma superprodução sob a tutela do produtor Dino De Laurentiis onde perdeu o controlo criativo.
O resultado foi um retumbante fracasso artístico e comercial, com diferentes versões disponíveis e que Lynch essencialmente renegou, fazendo com que nunca mais se quisesse envolver em projetos grandiosos. Apenas uma consolação: o encontro e o início de uma longa colaboração artística com o ator Kyle MacLachlan.
Apesar do desastre de onde tinham acabado de sair, o volátil produtor italiano cumpriu a promessa de concretizar uma história em que Lynch trabalhara ao longo de vários anos, um 'thriller' de pesadelo com toques de fantasia que acabou por ser o regresso artístico: "Veludo Azul" (1986).
História de um homem que regressava à sua cidade natal após uma longa ausência, descobria uma orelha humana num campo e, não ficando satisfeito com a investigação policial, procede à sua e mergulhava na perversidade, chegou a segunda nomeação ao Óscar da categoria e foi o início de parcerias artísticas e pessoais com a atriz Laura Dern e o compositor Angelo Badalamenti. E ao lado de Kyle MacLachlan surgia Isabella Rossellini, com quem começou uma relação que durou cinco anos.
Um ano triunfal
O momento incontornável na carreira de Lynch foi em 1990, a começar com a Palma de Ouro do Festival de Cannes com o estonteante "Um Coração Selvagem" ("Wild at Heart"), adaptação de um romance de Barry Gifford com Nicolas Cage, Laura Dern e Willem Dafoe. Singular fantasia hiper-realista percorrida pela memória do cinema, onde "O Feiticeiro de Oz" ocupava um lugar privilegiado, continua a ser um dos filmes mais aclamados do realizador.
A seguir, foi ainda mais longe, com uma série que marcou a época e operou uma revolução na produção em televisão: "Twin Peaks".
Tendo como estrela Kyle MacLachlan como o agente do FBI Dale Cooper, destacado para investigar o homicídio de uma adolescente, a história passava-se numa cidade aparentemente tranquila e agradável, como aquelas por onde Lynch passou na infância e retratou em "Veludo Azul", mas afinal povoada por figuras bizarras e a esconder muitos segredos: a vítima e ‘rainha do liceu’ vivia uma vida dupla como prostituta viciada em cocaína.
Apesar de só ter realizado o episódio-piloto e o terceiro da série do canal ABC, a influência de Lynch nota-se em todos os pormenores (e até aparece à frente das câmaras como o agente do FBI Gordon Cole): não fez grandes cedências ao levar para a TV as suas marcas do cinema, com o co-criador Mark Frost, saído de "A Balada de Hill Street", a ajudar a dar alguma coesão narrativa ao universo onírico e serpenteante.
"Twin Peaks" foi um ponto de viragem na ficção televisiva, que questionava os limites do meio enquanto recusava o papel de parente pobre do cinema. Rodado como se fosse um filme e muito à frente do seu tempo, tornou-se um fenómeno viral antes do termo ser criado: entre 8 de abril e 23 de maio de 1990, a América e o resto do mundo ficaram obcecados com o mistério de "quem matou Laura Palmer?".
Após os "apenas" oito episódios da primeira temporada, apontados, de forma praticamente consensual, como o pico criativo, o entusiasmo do público e da crítica esfriou durante a segunda, com 22 episódios, com as audiências a baixaram abruptamente após a revelação da identidade do culpado, levando a ABC a cancelar a série. Mas o culto estava criado e permitiu avançar com uma versão para o cinema em 1992, "Twin Peaks: Os Últimos Sete Dias de Laura Palmer" (1992), onde se mostravam mais detalhes sobre a intrincada trama. Mas para desespero de Lynch, foi um fracasso que arrecadou apenas quatro milhões de dólares nas bilheteiras. E mal sabia que haveria de voltar à cidade 25 anos depois...
Em 1997, chegou o sétimo filme, "Lost Highway: Estrada Perdida", outro 'thriller' com toques de fantástico e considerado pelos fãs na altura como um regresso triunfal do cineasta,à volta do saxofonista Fred Madison, acusado do misterioso assassinato da sua mulher, que sob pena de morte se transformava inexplicavelmente no jovem Pete Dayton, levando uma vida totalmente distinta. E quando Pete era libertado e o seu caminho cruzava-se com o de Fred, surgia uma teia de surrealismo e obsessões.
Após os extremos do filme anterior, muitos fãs e outros espectadores menos cativados pelo realizador foram surpreendidos quando, dois anos depois, se apresentou com "Uma História Simples", diferente de tudo que já tinha feito, a recuperar o humanismo de "O Homem Elefante", o comovente retrato de uma alma.
Esta era a crónica da estranha viagem de Alvin Straight, de 73 anos, desde Laurens, Iowa, até Mt. Zion, no Wisconsin, com o intuito de restabelecer a relação com o seu irmão mais velho, Lyle, de 75 anos, que se encontrava doente. O único elemento bizarro que por aqui se encontra é o do protagonista (um precioso Richard Farnsworth, nomeado para o Óscar) viajar pelo coração da América... num pequeno trator.
Seguiu-se uma rejeição "televisiva": os executivos da ABC viram uma versão em bruto e cancelaram "Mulholland Drive" (2001), que acabou por ser salvo quando um amigo de Paris, o produtor Pierre Edleman, o visitou e convenceu a transformá-lo num filme, estabelecendo os contactos para a produtora Canal+ (agora Studiocanal) entrar com financiamento que era necessário.
Regressando com situações ainda mais bizarras, a história começava com Diane a chegar a Hollywood para perseguir o sonho da fama, envolvendo-se com Rita, por quem se apaixona. Mas esta estava mais preocupada em chegar à ribalta através do seu poder de sedução sobre o realizador Adam, com quem pretendia casar-se. Traída e destinada ao insucesso, Diane contratava um assassino para acabar com a vida de Rita. E é aqui que uma nova vida começava...
"Mulholland Drive" revelou as atrizes Naomi Watts e Laura Harring, foi recebido em triunfo no Festival de Cannes, onde ganhou o prémio de Melhor Realização, com Lyncha receber também a terceira e última vez nomeação na categoria nos Óscares.
Cansado do sistema de produção americano que não lhe permitia liberdade suficiente, o filme seguinte já produzido com o financiamento francês da Canal+: dominado por Laura Dern como uma atriz que vê o seu mundo tornar-se um pesadelo surrealista quando começa a confundir-se com a sua nova personagem num filme, "Inland Empire" é um trabalho plástico e ainda mais experimental sobre vingança e libertação, onde a fronteira entre a realidade e o onírico é ainda mais ténue, como se fosse uma intersecção com outros filmes e um programa televisivo ("Rabbits") que parece guiado pela intuição ou magia.
Este foi o décimo e provavelmente último filme da carreira para o grande ecrã, como assumiu o realizador em 2017: "As coisas mudaram muito nestes 11 anos, e uma dessas coisas é a forma como as pessoas percebem os filmes, o facto de que muitos deles não funcionam bem nas bilheteiras, apesar de serem grandes filmes. E as coisas que fazem sucesso nas bilheteiras não são as que eu queria fazer".
Lynch na fase de lenda sem nada a provar
Apesar de ter participado na criação e dirigido episódios de outros projetos (a série "On the Air", a antologia "Hotel Room", no início dos anos 1990), o mistério de Laura Palmer foi o único sucesso de Lynch na TV, a tal ponto que, aceitando a proposta do canal Showtime, a ele regressou em 2017 para uma terceira temporada de "Twin Peaks" com a maioria dos mesmos atores, que descreveu como um "filme" em 18 episódios. E não faltou quem colocasse um dos eventos mais esperados na televisão na sua lista de melhores do ano... em cinema.
Em junho de 2018, chegava “Espaço para sonhar” ("Room to dream"), uma pouco convencional autobiografia, coassinada pela jornalista e colaboradora próxima Kristine McKenna, com cerca de 500 páginas com fotografias e reflexões “poéticas, íntimas e francas" do próprio e as que resultaram de entrevistas a cerca de 90 pessoas com quem se cruzou ao longa da vida e carreira, de familiares e amigos a, como recordava a editora, "ex-mulheres surpreendentemente diretas, atores, agentes, músicos e colegas em áreas variadas, cada um revelando a sua própria versão dos acontecimentos”.
A 27 de outubro 2019, Lynch foi finalmente distinguido com um Óscar honorário, apresentado, como não podia deixar de ser, por Kyle MacLachlan e Laura Dern, amigos fiéis e as figuras incontornáveis do seu percurso artístico.
Na cerimónia dos 11º Governors Awards, Dern recordou que "David é um homem que ousa inventar, criar e desafiar-se a si mesmo, todos os dias".
Isso pode ser testemunhado pelas atividades nos anos mais recentes, onde, além de casar pela quarta vez e voltar a ser pai em 2012 (também pela quarta vez), e homenagens pela carreira, se tem mantido ocupado a realizar videoclips e curta-metragens, e a dedicar-se desde a fotografia à pintura e desenho, com exposições por vários países, e à música: em 2007, criou a David Lynch Music Company e adaptou o site oficial na Internet a um arquivo digital com as suas gravações, e lançou os álbuns "BlueBOB" (2001), "Crazy Clown Time" (2011) e "The Big Dream" (2013).
"Não sou músico, mas gosto de experimentar e tenciono fazer música", dizia ao jornal The Guardian em 2010, admitindo que a música se transformara numa "poderosa fonte de inspiração".
Em 2007, Lynch esteve em Portugal para uma homenagem com retrospetiva na primeira edição do agora Lisbon & Sintra Film Festival, do produtor Paulo Branco... e aproveitou para fazer uma conferência sobre meditação transcendental, uma técnica que pratica desde os anos 1970 e que o levou a criar uma fundação.
"Era uma pessoa afetada pela depressão e pela raiva. Com a meditação consegui ultrapassar emoções negativas como o medo e a ira, libertei a minha consciência, e a criatividade começou a fluir", descreveu na altura aos jornalistas.
Retomando uma prático no seu site extinto na década de 2000, também há os vídeos diários com boletins meteorológicos a partir da sua casa em Los Angeles, 950 consecutivos publicados no seu canal no YouTube até decidir fazer uma pausa a 16 de dezembro de 2022. Ainda em vídeo, há as séries "What is David Lynch Working on Today?" [No que está hoje a trabalhar o David Lynch?], uma boa montra dos seus diversos interesses, e "Today's Number Is...", onde todos os dias escolhia um número aleatório de 1 a 10 usando uma jarra com 10 bolas de pingue-pongue numeradas (e é só isto). E em junho de 2020, em plena pandemia, até relançou no seu canal a série web "Rabbits".
Em novembro de 2020, os fãs entusiasmaram-se com o anúncio de que estaria a trabalhar num projeto para a Netflix com os títulos provisórios "Wisteria" e "Unrecorded Night", 13 episódios e um orçamento de 85 milhões de dólares, e produção marcada para arrancar em maio de 2021 em Los Angeles, mas não houve mais novidades.
Em fevereiro de 2022, nova notícia: ia entrar participar como ator em "Os Fabelmans", o próximo filme de Steven Spielberg. O papel que a publicação Variety avançava na altura que era "um segredo muito bem protegido" era o do lendário realizador John Ford, com quem um jovem Spielberg teve um encontro em 1962 que dramatiza no final do filme.
O convite só foi aceite após insistência de Laura Dern (a pedido do realizador que a dirigira em "Parque Jurássico") e teve uma condição: receber o guarda-roupa com duas semanas de antecedência, chapéu e pala incluídos, para se habituar todos os dias a essa nova "pele".
É um momento inesquecível do filme e segundo Tony Kushner, o argumentista, também o foi nos bastidores: "Foi um dia espantoso na rodagem. Toda a equipa estava do género 'Isto é a coisa mais complicada e meta: Steven Spielberg a dirigir Gabriel LaBelle a interpretar Steven Spielberg, a encontrar-se com John Ford, interpretado por David Lynch'"...
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