O novo filme de Luís Filipe Rocha, já em exibição nas salas, é um daqueles exemplares do cinema português situado algures entre o cinema de género e o de autor.

"Cinzento e Negro" narra uma investigação empreendida por um polícia (Filipe Duarte) amargurado com o suicídio da filha, que trabalha em parceria com uma empregada de limpeza (Joana Bárcia) em busca de vingança. Na história surge ainda o seu namorado desaparecido (Miguel Borges) e até uma “sereia” (Mónica Calle) que “pesca homens” numa ilha dos Açores…

Em conversa com o SAPO MAG, o realizador conta os percursos desta viagem inspirada em Homero, finalizada em ritmo de 'western' e trocando as voltas a qualquer moralismo.

Ponto de partida: a mulher da bota ortopédica

“A génese do filme tem a ver com uma imagem antiga. Em 2003, fui a uma agência tratar do funeral de um familiar e a empregada que me atendeu, que era a única pessoa que estava lá, tinha uma bota ortopédica. Provavelmente sensibilizado com o que ia fazer fixei-a. Três semanas depois fui a Almada ao teatro e, como cheguei cedo, fiquei numa “tasquinha” no passeio. Então, no outro lado da rua, vi passar essa empregada, carregada de sacos de compras e, ao seu lado, ia um homem, que só poderia ser o namorado dela, com as mãos nos bolsos! E estas duas imagens começaram a fazer um percurso cá dentro e sobretudo a clamar por vingança!" [risos].

A mala desaparecida

“Comecei por reler as tragédias gregas, que continuam sendo para mim um instrumento fundamental para tentar conhecer a alma humana, mais do que os tratados de psicologia. Depois utilizei o 'McGuffin' mais usado da história do cinema – o saco de dinheiro atrás do qual se corre –, então há esse elemento de 'thriller'. Para terminar, desenvolvi um final 'westerniano', uma vez que me lembrei que o Jorge Luís Borges dizia que o 'western' foi o género que substitui a epopeia nos tempos modernos – depois desta ter desaparecido."

Cadáveres, sereias e baleias: a odisseia

“Uma vez estabelecidos os fundamentos do filme, fiz um trabalho diferente do que estava habituado – o que foi muito estimulante e, por isso, demorei muito tempo a escrever. Essencialmente, quis que fossem os personagens a dizer por onde é que queriam ir e tentar interferir o mínimo possível no andamento da história.

Sei muito pouco destas quatro personagens, entreguei-as com enormíssimo campo de atuação aos atores, tendo apenas a história muito rarefeita sobre um velho que é morto, um saco com o qual se foge, um polícia que está num momento particular da vida porque a filha se suicidou e uma mulher que 'pesca nos Açores homens à linha', uma espécie de sereia – uma vez mais a "Odisseia", se quisermos.

Depois temos as temáticas ligadas aos Açores, a pesca à baleia, os arpões, a baía cheia de sangue que era onde se tratavam os animais capturados, há uma espécie de intemporalidade arcaica nisto tudo. Nesta viagem não interessa quem somos, de onde viemos, para onde vamos, mas a trajetória em si – que é o grande tema de Homero. Estão lá as guerras, a história, mas do ponto de vista universal, intemporal, é a viagem. Depois tentei encaixar essas coisas todas."

Regresso à casa

“Quando nós, a certa altura da nossa vida, tentamos acertar o passo com um destino que é o nosso sonho, isto é como que regressar à casa. Vejo muito a vida como uma viagem. E o personagem do Miguel Borges, que carrega consigo um exemplar de Homero, é um homem que tem um sonho completamente absurdo: ele nunca leu um livro e decide começar pela "Odisseia" porque este foi ‘um dos primeiros’.

Depois é como se aquela quinta no Pico fosse uma espécie de regresso à casa que ele sempre quis e nunca teve. Neste sentido, digamos que na sua personagem há como que uma espécie de encaixe à viagem e ao regresso de Ulisses."

A suspensão do juízo moral

“É uma regra para mim na ficção, seja literária, romanesca, seja no cinema, aquilo que o [Milan] Kundera definia como a ‘suspensão do juízo moral’. É a única forma de podermos avançar no conhecimento, na pesquisa e na observação da misteriosa alma humana. Se começamos a julgá-la, ficamos a não compreender.

De facto, há duas mortes no filme, qualquer delas moral e criminalmente discutíveis, mas isso não me interessa. Estou noutro plano, no ficcional, onde há um mundo que a própria história criou e onde estas personagens nascem, vivem e morrem, são apanhados a meio de vida. A falta de juízo moral e ético é intencional e deliberado."

A solidão

“Há um tema recorrente nos meus filmes que é a solidão. Nos momentos mais decisivos da nossa vida estamos sozinhos. Esta foi uma característica essencial das personagens – quatro seres que, no fundo, estão sozinhos."