Em 2002, o Guardian pediu a seis críticos de cinema que descrevessem “Mulholland Drive”. Um deles considerava ser contraproducente continuar a analisar o filme. Tinha passado cerca de um ano da estreia daquela que é a obra-prima de David Lynch. Hoje, passaram-se quase 18, mas as teorias continuam a desassossegar os espectadores, para descontentamento do realizador.

Uma sondagem da BBC, em 2016, apurou qual o melhor filme do século XX. Feitas as votações, a escolha recaiu sobre “Mulholland Drive” (2001), um filme polémico por não ser absoluto. Um filme que abre espaço para múltiplas interpretações e que, por isso, ter entretido o mundo do cinema que se espraia em conjeturas.

Há a teoria de que o filme é uma ilusão provocada por drogas e a de que tudo não passa de um surto psicótico. Há os defensores de que se trata de um longo sonho e os apologistas da narrativa partida em duas partes (dentro do sonho e depois dele). Há quem diga que o início é o fim do filme. Para uns, o casal de idosos faz parte do júri que dá a vitória a Betty no concurso de dança que ganhou na sua terra natal, antes de ir para Los Angeles. Outros continuam a perguntar quem é o cowboy, de onde vem e o que faz! Há ainda quem vá atrás da inspiração de David Lynch e encontre paralelismos entre “Mulholland Drive” e as histórias antigas de Hollywood, das atrizes descartadas pela indústria. Outros recuperam as histórias da própria estrada, Mulholland Drive, um miradouro aberto de onde se vê a cidade e os sonhos que a habitam, mas também palco de acidentes e mistérios.

David Lynch disse, numa entrevista, que é uma pena quando alguém lhe pede para traduzir em palavras os seus filmes. É impossível. Porque ali foram trabalhados todos os elementos para que cada um produzisse um dado efeito. O todo resulta porque as partes são fortes. Descrevê-lo, analisá-lo, explicá-lo é tão menos interessante do que a experiência cinematográfica. David Lynch diz que nunca se pede uma descrição por palavras do que é uma música, do que ela significa, porque cada ouvinte a interpreta à sua maneira.

Por que não fazer o mesmo com o “Mulholland Drive”?

Vamos então a uma interpretação em sinopse, que não descarta algumas linhas daquelas teorias mas evita reconhecer uma só como legítima. Betty (Naomi Watts) vai para Hollywood tentar a sua sorte como atriz. Na casa onde fica alojada, dá com Rita (Laura Harring), que perdeu a memória num acidente de carro (onde? Mulholland Drive, claro). Betty dedica o seu tempo a ajudar Rita (nome inspirado em Rita Hayworth), que tem uma suspeita carteira cheia de dinheiro. Mas Betty não desconfia dela, em vez disso, envolve-se com Rita.

Só que Betty acorda e é, afinal, Diane Selwyn. Naomi Watts perde o ar rosado das suas bochechas e o brilho dos olhos apaga-se. As ondas brilhantes do cabelo loiro dão lugar a pontas encrespadas. Os casacos delicados e coloridos transformam-se em tops brancos enrugados.

Sim, ficamos com a certeza de que, a qualquer momento, Diane vai repetir uma dose da droga que terá tomado antes. Mas isso não acontece, porque Lynch joga com as nossas expectativas sem sequer tentar iludi-las.

E o cowboy?

A esta altura, “Mulholland Drive” parece ter um enredo semelhante a Memento (2000) ou The Machinist (2004), como um thriller psicológico que já está muito visto. Mas é quando começamos a ligar as pontas soltas do filme que percebemos que estivemos dentro dos sonhos de Diane e assistimos, impávidos, à sua versão da história. E, no mundo dos sonhos, tudo é possível e tudo faz sentido.

Só que a realidade não é assim. Rita é Camilla Rhodes, atriz de sucesso que termina a relação com Diane para logo começar outra com o realizador Adam Kesher (Justin Theroux). Por vingança, Diane encomenda a morte da ex mas deixa-se consumir pela culpa e acaba por cometer suicídio.

Não cola muito aqui a parte em que Betty chega a Hollywood, toda ela uma candura, cheia de esperanças. Claro que esta é, novamente, a visão que Diane tem de si mesma, mas não é claro se este excerto da história pertence ao mundo dos sonhos ou à realidade, mesmo que fantasiada.

Se há motivo de inquietação para os cinéfilos fãs de “Mulholland Drive” (além do cowboy!) é a cena em que Betty e Rita entram num clube noturno e se desfazem em lágrimas ao assistirem à interpretação de “Crying” (Roy Orbison). A cantora sofre um acesso qualquer e deixa-se cair no chão mas a sua voz continua a ouvir-se na sala. Como o mestre de cerimónias havida declarado antes de a cantora começar, “no hay banda”. “It is an illusion.” David Lynch dá-se ao pormenor de dizer, na boca de uma personagem, que “é uma ilusão” e parece tão claro que está a explicar-nos que estamos dentro dos sonhos, que todas as teorias perdem sentido. No mundo dos sonhos, tudo é possível. Até mesmo que exista uma caixa azul, que só se abre com uma chave igualmente azul e a caixa está cheia de nada mas tem um imenso poder, de tal forma que, quando Rita a abre, desencadeia o fim do filme, que é o início da realidade e a expiação da culpa da protagonista.

Mas “Mullholand Drive” não se cinge a um enredo inesperado. Ver este filme é imaginar que David Lynch terá passado largos meses a matutar sobre cada pormenor, porque todos eles estão impregnados de significado e é tão fácil deixá-los escorrer por entre os dedos das mãos sem reparar na sua função na história. Reparamos de imediato que a empregada do café onde Diane encomenda a morte de Camilla se chama Betty e sabemos que é daí que vem o nome. Mas há coincidências mais impressionantes.

Diane descreve Camilla e o serviço que está a adquirir: “This is the girl”, diz. É exatamente a mesma frase que os patrões de Hollywood (parecidos com patrões da máfia) ordenam a Adam (no sonho!) para que escolha uma atriz em vez de Betty. “This is the girl”. Na cena inicial em que, nesse mesmo café, um homem conta a outro um sonho estranho que teve, nem nos damos conta de que o filme está a explicar-nos muito claramente como se produz um sonho, de que se faz essa unidade intangível que nos vai mostrar depois quem é Diane, melhor do que se ela própria nos contasse a sua história.

Os estranhos que povoam os nossos sonhos

Sabemos quase tudo sobre Diane e nem assim simpatizamos com ela. Nem mesmo com a sua versão Betty, rosada e feliz, que chega a Hollywood com os olhos cheios de sonhos e uma ingenuidade estranha a toldar-lhe a visão. Mas também não pendemos para o lado de Camilla.

A personagem de Laura Harring esconde alguma coisa, achamos, enquanto desconfiamos do seu batom vermelho e roupas a condizer. Não aderimos a estas personagens mas compreendemos as suas dificuldades, porque são muito reais: o orgulho ferido do realizador (traído pela mulher e forçado a escolher uma atriz que não quer); a ingenuidade de Betty, levada ao extremo; a vaidade de Camilla no seu sucesso no cinema.

Até as personagens com pequenas participações parecem ter uma linha narrativa muito sólida. É como se David Lynch tivesse convivido com elas durante meses, a escrever as suas histórias, para depois decidir o que deveriam fazer no filme.

Uma das leituras de “Mulholland Drive” aponta que as personagens se fragmentam e que é isso que acontece na passagem da primeira para a segunda parte do filme. Faz sentido e é brilhante que isso tenha sido planeado, porque também nos sonhos construímos personagens instantâneas com os rostos com quem apenas nos cruzámos brevemente.

Sim, parece ter sido um extenuante trabalho de escrita e um profícuo ambiente de criação. Por isso, façamos o que Lynch pede. Interrompam-se as conjeturas e esgotem-se as teorias. “Mulholland Drive” não precisa de explicações nem de leituras, cada um com a sua, em silencio.

Contentemo-nos com a fonte inesgotável que é este filme, sabendo que, a cada nova visualização, vamos encontrar significados em pormenores antes ignorados.

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