Há demónios à solta em “Assassinos Natos”. Há demónios à solta e vivem dentro de Mickey e Mallory Knox, um casal amoroso e assustador de dois serial killers que o destino juntou numa viagem com mais de 50 vítimas.
A culpa é das suas famílias abusivas, de terem crescido com os olhos colados à televisão viciante, de terem bebido da sede de mediatismo colectiva. A culpa é da sociedade doente que os produziu e cuspiu e esta é uma das premissa fortes do filme. Estamos nos anos 1990 e Oliver Stone, realizador, deixa o aviso: esta era está perto do fim. Só que esse fim não chega e o caminho que o realizador ladrilhou para lá chegarmos (“o amor será a salvação”) é demasiado ingénuo para esta história, que faz agora 25 anos.
Mickey (Woody Harrelson) e Mallory (Juliette Lewis) estão num daqueles cafés americanos onde, convenientemente, os clientes são sempre poucos. Há sempre uma jukebox e a certeza de que algo está para acontecer. Mickey veste de branco, o cabelo está apanhado atrás e usa uns óculos de lentes redondas e rosadas. Mallory usa um top curto e calças de cabedal, enquanto dança ao som da jukebox. Todos os clientes e a empregada acabam mortos. Todos menos um: é tradição deixar uma testemunha que possa passar a palavra sobre os horrores que ali aconteceram; sobrevive para poder dizer que aquela foi obra de Mickey e Mallory Knox.
Na América de Oliver Stone, a fama que os protagonistas procuram chega depressa. O realizador mostra-nos capas de revistas importantes com os rostos dos dois assassinos em série; entrevista-se um jovem que até condena homicídios, mas, se fosse um assassino, seria como aqueles dois.
A ideia é mostrar como essa sociedade – que tem apreço por aquele casal – perdeu o tino algures num zapping cego. Na vida real, os americanos assistiram à glorificação de acontecimentos violentos através da televisão: o julgamento de OJ Simpson, acusado de assassinar a mulher; as notícias de que os Menendez Brothers tinham assassinado os pais, conhecidos multimilionários; a vingança de Lorena Bobbitt sobre o marido agressivo; o caso de Tonya Harding.
Mickey e Mallory repetem que são o produto da sociedade onde nasceram e cresceram, como que a lavar as mãos cheias de sangue e a culpar as sias famílias. Vemos flashbacks de Mickey em criança, amedrontado pelo pai agressivo, e assistimos à vingança de Mallory sobre o pai sexualmente abusivo e a mãe conivente. São assassinos de quem merece, e, na verdade, são poucos os que não merecem a morte. Por isso, é de consciência leve que se movem de vítima para vítima. Até porque Mickey é um crente forte do destino, o que os juntou e o que lhe diz que o amor será a salvação de ambos.
A obsessão não chega a ter contornos de loucura e é difícil pensar nas personagens como psicopatas, mérito dos atores. Woody Harrelson e Juliette Lewis conseguem o equilíbrio perfeito entre a loucura e a sanidade, porque apontam racionalizam as suas ações. Alimentam o terror nas suas vítimas mas são carinhosos um com o outro – basta ver a cena do seu casamento, improvisado à beira da estrada, em que fazem cortes nas suas mãos para selar o enlace com sangue, antes de prometerem um ao outro que não vão matar ninguém naquele dia especial.
A mente de Tarantino e a mão de Stone
Entre a voz de Leonard Cohen, a música dos L7 e imagens dispersas (uma cascavel a preto e branco, Nixon na televisão...) e Mickey e Mallory nos braços um do outro a dançar ao som de “La Vie en Rose”, os créditos surgem no ecrã. Diz-nos a imagem que esta história é da pena de Quentin Tarantino.
Oliver Stone realizou e, com David Veloz e Richard Rutowski, escreveu o guião. A ideia original é um clássico de Tarantino e só os que são demasiado críticos do filme não o reconhecem, por detrás das opções de Oliver Stone.
A verdade é que Stone mascarou a simplicidade do guião (que nos vai repetindo aquelas premissas iniciais, a ver se se colam à memória) com uma realização única. A gota de sangue que escorre das mãos do recém-casados transforma-se uma animação, assim como várias cenas mais violentas passam pelo filtro do cartoon. Há uma mistura de géneros que surpreende e frames inesperados a interromper – como aqueles demónios que saltam dos pensamentos de Mickey e Mallory para dentro do filme. A história dos abusos cometidos pelo pai de Mallory é contada em formato de sitcom britânica e parece que não faltam sequer os habituais risos à pressão.
“Assassinos Natos” é como um videoclip dos anos 1990, ora com cores esbatidos, ora a saltar entre o preto e branco. Quando o casal é ajudado por um índio, Mickey sonha, diante da fogueira, com os seus demónios, a infância e o futuro. Sob o efeito de algo, assustado, acaba por matar o índio. Os planos de Oliver Stone são irrepreensíveis durante as divagações de Mickey por essas memórias e sonhos e especialmente na fuga do casal, quando os dois são mordidos por cascavéis e se arrastam até uma loja para comprar o antídoto.
Esse episódio precipita a captura dos infames criminosos. Já na prisão, Mickey dá uma entrevista ao jornalista Wayne Gale (Robert Downey Jr.), as palavras do assassino incendeiam o ambiente entre os prisioneiros e a cena acaba em motim. Tudo é transmitido em direto. Oliver Stone conseguiu gravar esta parte do filme na Stateville Correctional Center, prisão verdadeira do estado de Illinois. Alguns condenados a cumprir pena chegam a entrar no filme.
No meio do caos e dos corpos, a entrevista continua a ser transmitida em direto, com Wayne Gale a saltar para o outro lado da barricada e a disparar sobre outros para defender Mickey, ajudando-o a resgatar Mallory. É a epítome da tese de Oliver Stone: uma fuga em direto para todo o País, assassinatos a sangue frio, perigosos criminosos em fuga e tudo sob o olhar atento e dormente da população, que os idolatra.
E eis que surge novamente a voz de Leonard Cohen, mais segura e tranquila no meio do caos, a abrir caminho à fuga de Mickey e Mallory. Nesta banda sonora, saltam aos ouvidos nomes como Patti Smith, Peter Gabriel, Marylin Manson, Rage Against The Machine e uma versão dengosa de “You Belong To Me” por Bob Dylan. É que a banda sonora de “Assassinos Natos” ficou a cargo de Trent Reznor, nome que lidera uma setlist de luxo.
Reznor sugerir ao realizador que a banda sonora fosse uma colagem e a ideia cabia perfeitamente no espírito do filme, cuja edição é também uma colagem de episódios, pontos de vista das personagens, pensamentos e receios secretos... Ali estão ainda os próprios Nine Inch Nails e Nancy Sinatra com as suas botas (na voz de Juliette Lewis).
A pérola da banda sonora chega com o final do filme quando se ouve a voz profética de Cohen uma terceira vez. Oliver Stone quis terminar a história entre a esperança da redenção e o desencanto do destino. É que, depois de se confessar um assassino nato e de prometer acabar com a carreira, Mickey terá de matar uma última vez. Não precisa de deixar Wayne como testemunha dos seus feitos, o País inteiro viu-os em direto. E quando as balas começam a voar na direção do peito do jornalista, ali está novamente o demónio de Mickey a meter-se entre os frames do realizador.
Oliver Stone enganou-se
Em entrevista, em 1994, Oliver Stone explica que o filme era uma sátira, inicialmente, que depressa se tornou uma história verosímil. Por isso, diz, não o surpreenderia que surgisse alguém como Mickey e Mallory na vida real, à procura dos seus 15 minutos de fama.
Hoje, “Assassinos Natos” é considerado uma das inspirações do massacre de Columbine, dado que se encontraram nos registos dos autores algumas referências ao filme.
O que é certo é que “Assassinos Natos” foi recebido como um filme polémico, não agradou a todos os públicos e acabou por entrar no ciclo do esquecimento. Sem saber se conquistou o estatuto de filme de culto, é seguro dizer que tem qualidade para ombrear com a fama de “Trainspotting” (1996), de Danny Boyle. A estética é visionária, embora a história se arraste por momentos. Além disso, é impossível não comparar bandas sonoras: o filme de Danny Boyle contou com New Order, Iggy Pop, Lou Reed, Blur, Underworld...
“Assassinos Natos” também fala de um tempo em mudança e é isso que Oliver Stone diz naquela entrevista: a era que se vivia ia terminar por exaustão daquele modo de vida ou por saturação do público, que se tornaria desinteressado.
A cultura mediática não explodiu nem se desvaneceu, mas abriu caminho a uma era nova e isso o realizador conseguiu prever. Os anos que se seguiram trouxeram a reality tv, e criaram o culto do clickbait, num scroll infinito, frenético e dormente. A cultura da exposição pública instalou-se silenciosamente no nosso modo de vida.
É aqui que a tese de que o amor é via para a redenção cai por terra, porque é desinteressante para lá do elemento romântico de “Assassinos Natos”. O filme perde-se entre a crítica social e a história clássica de amor. É difícil resistir àqueles anti-heróis, percebe-se, mas é a narrativa quem sofre.
Serve o consolo de saber que o prazo de validade esta história expirou depois dos dias de Mickey e Mallory e o filme só teria sido possível naquela altura. Estávamos, realmente, num momento de viragem. Mas não desligámos a televisão e, em vez de desviarmos o olhar, consumimos hoje ficção sobre o caso de OJ Simpson e outros.
Charles Manson, de que já se falou, é outro nome que desperta sempre atenções. Tarantino colocou-o no seu mais recente filme, embora alternando o curso da história em torno desta figura – porque tudo é possível no universo de Tarantino, até mesmo brincar com personagens reais, quanto mais malévolas melhor.
David Fincher também não resistiu à ideia de Manson, na segunda temporada da série Mindhunter, que agora estreou em Portugal. Passam agora 50 anos desde que os seguidores de Manson assassinaram Sharon Tate, amigos e vizinhos, naquele ano de 1969 (no filme de Tarantino) e também nessa altura se respirava o ar da mudança. Woodstock, sobre o qual também já passam cinco décadas, foi outro marco dessa viragem e, antes do final de 1971, morreria Jim Morrison e, com ele, uma voz daquela geração. Manson, de resto, buscava a fama, como estes nossos Mickey e Mallory.
“Assassinos Natos” foi lançado neste mês de agosto, há 25 anos. Porque merece um lugar mais honroso na história do cinema, vale a pena dizer que Oliver Stone tinha as melhores intenções com este filme e não estava muito longe quando adivinhou que uma nova porta se abriria em breve.
O público também não rejeitou inteiramente “Assassinos Natos”. Poderá, em vez disso, ter-se recusado a olhar para o seu reflexo no espelho – certeiro, incómodo, revelador. O público olha pelo buraco da fechadura e rejeita admitir os seus vícios colectivos. É da natureza humana. Da mais elementar natureza humana.
Comentários