Quase tudo parece ter acontecido por acaso em “Voando sobre um Ninho de Cucos”. Se foi o acaso que deu origem a este filme, então o tiro foi certeiro: viria a ganhar Óscares nas cinco grandes categorias e ficaria para a história do cinema como um dos melhores filmes de sempre.
O epíteto parece ambicioso para um enredo tão simples. R.P. McMurphy (Jack Nicholson) convence a Justiça de que é doente mental para escapar a uma pena mais pesada e vai parar a um hospital psiquiátrico. Numa metáfora muito transparente para o mundo moderno, encontra uma enfermeira tirana que controla os pacientes, aproveitando as fragilidades mentais para manter a disciplina.
McMurphy perturba a ordem instalada e convence o grupo a revoltar-se contra a enfermeira.
Vamos aos acasos. Ken Kesey edita “Voando sobre um Ninho de Cucos” em 1962. Kirk Douglas rende-se à história e compra os direitos para a transformar em filme. Mas passam dez anos até que alguém aposte no projeto (não um estúdio, o filme foi feito com mão independente). Pelo meio, Kirk Douglas até adapta a história para a Broadway mas acaba por ficar demasiado longe da idade do protagonista, que queria interpretar. A ligação emocional ao projeto manteve-se, quando passa os direitos a Michael Douglas que, com Saul Zaentz, produziu “Voando sobre um Ninho de Cucos”. O filme chega finalmente em 1975, com Jack Nicholson no papel principal.
Quis também o acaso que fossem consultados alguns realizadores sobre as suas abordagens à história. Só Milos Forman convenceu, ele que diria, mais tarde, que olhou para “Voando sobre um Ninho de Cucos” a partir da sua experiência nos anos comunistas da República Checa. E por falar em opressão, Louise Fletcher fez várias audições ao longo de meses até convencer que estaria à altura da enfermeira Ratched. Na verdade, só Danny DeVito era uma certeza quando o projeto começou a ganhar forma, porque o ator já tinha participado na experiência da Broadway e voltaria a vestir o papel de Martini, agora no grande ecrã.
Ao acaso ficou ainda a forma como as filmagens decorreriam, uma vez que tiveram lugar num hospital psiquiátrico do Oregon e contaram mesmo com a participação de alguns pacientes como figurantes. Além disso, Milos Forman não mostrava as filmagens aos atores, deixando-os vaguear quase no escuro durante a gravação. Mas o realizador fê-los mergulhar totalmente na experiência, pedindo que alguns deles dormissem na ala psiquiátrica, como os verdadeiros doentes faziam.
Nem esse estilo de realização impediu Jack Nicholson de revelar um desempenho brilhante. No ar fica, desde logo, a dúvida sobre se McMurphy estaria a simular a insanidade mental para fugir à penitência. Mas Nicholson ri com escárnio dos outros doentes, abre os olhos acelerados, incita os pacientes à rebelião com desespero porque tem, absolutamente, de ver o campeonato de basebol na televisão... Nicholson vai exagerando os comportamentos de McMurphy, quase como um doente maníaco persegue obsessão atrás de obsessão.
McMurphy torna-se líder da unidade psiquiátrica e consegue manipular a mentalidade do grupo a seu favor - um grupo onde a depressão convive com a mania e o controlo sobre a realidade se perde facilmente perante a angústia profunda que ela desperta.
Os diagnósticos vão da esquizofrenia à alucinação, aligeirados com toques de comédia pura. (Depois do suposto primeiro tratamento com eletrochoques, McMurphy finge aparecer apático mas provoca o riso do grupo e a ira da enfermeira quando interrompe o disfarce.) Pelo meio, encontram-se as tradicionais disputas de poder e a cedência aos vícios daqueles pacientes tão devotos da rotina imposta pela enfermeira-chefe. Afinal, McMurphy fica perplexo quando percebe que a maioria dos internados está ali de forma voluntária, podendo sair quando quiser mas escolhendo sempre ficar.
A busca pela liberdade é a cruzada da personagem de Jack Nicholson e contagia os outros doentes. Billy (Brad Dourif) não a suporta e acaba por cometer suicídio. Martini e Cheswick (Sydney Lassick) regressam à tranquilidade da unidade psiquiátrica no final. Mas é Chief (Will Sampson) quem assume a liberdade como missão, ele que é um índio americano alto e falsamente surdo-mudo. Esquizofrénico, Chief promete libertar McMurphy e sufoca-o com uma almofada durante a noite. “I feel big as a mountain”, diz por fim. (A cena rendeu fama ao filme e os The Simpsons fizeram a sua versão.)
“Voando sobre um Ninho de Cucos” fez o que só “Uma Noite Aconteceu” (1934) e “O Silêncio dos Inocentes” (1991) conseguiram, arrecadando Óscares nas cinco categorias principais - melhor ator e atriz para Nicholson e Fletcher; melhor realização para Milos Forman; melhor adaptação para o grande ecrã e melhor filme.
A fama de Milos Forman saía reforçada no cinema americano. E o filme só não lançou Jack Nicholson (que faria "The Shining" cinco anos depois) porque se trata de um ator que se serve das personagens para crescer, sem ficar preso a cada papel. Mais de quatro décadas passadas, “Voando sobre um Ninho de Cucos” continua a atrair espectadores às salas (esteve em cena no Cinepop, em Lisboa, este domingo). Como terá sido vê-lo a meio dos anos 1970?
Obra do acaso ou golpe de sorte, “Voando sobre um Ninho de Cucos” chegou no momento certo; diluiu barreiras da comédia e do drama com um tema difícil como este; e abriu caminho para os que vieram a seguir. Vem à memória I Am Sam (2001), com Sean Penn no papel de pai com um atraso cognitivo e uma história a partir de clássicos dos The Beatles.
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