A Companhia João Garcia Miguel revisita o clássico de Shakespeare “Rei Lear” de um ponto de vista “contemporâneo”, que “obriga o espectador a sentir, pensar refletir” e fazer a sua história dentro da de Lear.

Foi assim que João Garcia Miguel, responsável pela encenação de “Rei Lear”, que se estreia na quarta-feira, no Teatro Ibérico, em Lisboa, define o espetáculo que revisita em 2022 depois de em 2006 o ter posto em palco pela primeira vez em “Burger King Lear” e que desta vez é protagonizado pelo ator brasileiro Chico Díaz.

Nesta peça, o encenador faz uma “montagem muito cúmplice” com o espectador, como disse o próprio.

O objetivo é obrigar o espectador “a sentir, a pensar, a refletir e a fazer a sua própria história dentro daquela que é a história de Lear, que é uma história interna”.

Porque a história de “Rei Lear” é “uma história interna do ser humano” e “direta ou indiretamente todos a conhecem”, sustentou.

Na opinião de João Garcia Miguel, o tema central do texto clássico de Shakespeare é “a herança, o que uma geração passa para a outra”.

Por isso, o texto é também um “veículo para [se falar] das emoções e para fazer uma espécie de catarse daquilo que [se sente]”.

Segundo o encenador, na peça que agora estreia, há também lugar para pensar uma série de questões com que o ser humano se confronta na atualidade, como questões ecológicas e ambientais e como as gerações atuais passarão esse testemunho às gerações vindouras.

“O rei Lear, no fundo, é o nosso pai, a nossa história […], mas também é a maneira como nos vemos e sentimos desintegrados com a história e com essa relação com o que nos chega da história”, precisou o encenador, sublinhando que, apesar de ser “um velho”, o rei Lear “não passa de um menino mimado”.

“Um menino mimado e hiper-satisfeito, que olha para o mundo como uma espécie de que o mundo tem que lhe dar tudo e ele não quer dar nada em troca”, frisou.

Com um elenco luso-brasileiro, além de Chico Díaz a interpretar rei Lear, está também o ator brasileiro Cassiano Carneiro, no papel de conde de Gloucester e do Bobo, e a portuguesa Sara Ribeiro a interpretar as três filhas de rei Lear e os dois filhos do conde de Gloucester.

Para Chico Díaz, representar “Rei Lear” é “uma prova de fogo, uma prova de fibra e um risco muito grande” que, todavia, o fazem ficar “muito feliz”.

Na sua idade – acima dos 60 anos – é muito bom representar um texto que “é um tratado sobre a velhice e sobre os tempos velhos perante os tempos novos”, disse o ator à Lusa.

Porque a peça que João Garcia Miguel põe em palco fala da passagem de “cetro a uma geração que vem aí, geralmente muito ingrata, ou que [os mais velhos consideram] muito ingrata”.

Obrigado a “aprender uma nova oralidade, não só para tornar natural o Shakespeare, mas também a gramática portuguesa”, Chico Díaz mostrou-se “muito feliz pelo grande e fascinante exercício” que tem constituído o desempenho da sua personagem.

O ator mostrou-se igualmente feliz pelo facto de estar a fazer teatro em Portugal: É muito diferente do Brasil, onde ser ator é “terrível”, porque toda a política brasileira atual foi “pensada para desestruturar anos de uma identidade nacional”.

“Quebrou-se tudo, tudo, tudo; estamos numa situação muito terrível e as forças que lá agem nesse sentido são forças muito perversas a nível internacional”, argumentou o ator que integra o Movimento Humanos Direitos, uma organização não-governamental composta sobretudo por artistas brasileiros de defesa dos direitos humanos no Brasil.

Face a um Brasil que, sobretudo com a presidência de Jair Bolsonaro, tem “perdido em termos culturais e de autoestima” e onde “o povo está largado” e “a academia, os cientistas e os artistas estão todos desesperançados”, representar em Portugal é uma “lufada de ar fresco”.

Depois do Teatro Ibérico, onde está em cena até 13 de março, com sessões de quarta-feira a sábado, às 21:00, e, ao domingo, às 17:00, "Rei Lear” será apresentado em Torres Vedras (18 e 19 de março), Leiria (26 de março) e Santa Maria da Feira (13 e 14 de maio).

Brasil e Moçambique são países onde a peça também deverá ser representada, embora ainda não haja local nem data, disse João Garcia Miguel.