Voltar a olhar para o universo rural, "de uma outra forma", para um “universo pré-industrialização”, e perceber como o "equilíbrio ancestral [foi] quebrado pelo capitalismo e pelas regras do consumo", é outra das ideias que fica do espetáculo cujo título remete para o “voltar a um estado que é selvagem, com toda a beleza que o selvagem tem”, disse Marco Martins à agência Lusa, no final de um ensaio parcial da peça.

“Essa palavra [selvagem] tem múltiplos significados, mas aqui adquire o significado mais belo de todos, que é o natural”, frisou Marco Martins.

Oito homens portugueses - pastores ou ligados à agricultura -, caretos de Podence e sardos são os atores do espetáculo no qual Marco Martins propõe uma reflexão sobre o uso da máscara em práticas ritualísticas, as quais se assinalam em vários locais da Europa com fenómenos astronómicos que marcam o início das estações do ano.

“No campo sou livre. Vou para o campo desde os 8 anos, a primeira vez fui com o meu pai, depois comecei a ir com meus irmãos e aos poucos fui continuando (…)”, é uma das afirmações do pastor sardo Andrea Loi, de 18 anos, no espetáculo, em que fala do seu quotidiano no campo, à semelhança do que fazem os outros participantes, ao mesmo tempo que vão marcando o ritmo e o compasso com os pés.

Já Riccardo Spanum, um produtor de cerveja em Ottana, de 51 anos, na máscara típica da sua região natal, apresenta-se a contar que tinha dois anos quando o pai morreu e que, embora não tenha grandes memórias dele, alguns dos amigos e familiares comentavam serem um pouco parecidos na forma de andar, gesticular e falar.

O chão, coberto de terra, e uma espécie de teto, também de terra, fixam o cenário do espetáculo, onde, de vez em quando, os 'agricultores-pastores-atores' vão raspando, como se preparassem o terreno que cultivam e lhes garante o sustento.

Num espetáculo que se revela ecológico, o encenador disse à agência Lusa ter partido para a sua concretização “mais interessado no ritual, na festa, na celebração, na comunidade“, já que tal deriva de "um preconceito ou 'cliché' que tinha de que estas máscaras já só cumpriam uma função folclórica, uma função de festa”.

“Que é uma função também muito válida. Mas o que eu descobri é que elas [as máscaras] e os homens que aqui estão neste espetáculo, que são pastores, agricultores, etc., a usam ainda dentro desse contexto de ritual e com a mesma função, consciente ou inconscientemente”, frisou.

Por isso, Marco Martins nunca usa a palavra tradição, por considerar que estes rituais “não têm nada a ver com tradição”, apesar de continuarem a realizar-se sobretudo no inverno ou pelo Carnaval.

“Isto é só a repetição de um ritual e dentro da repetição há uma renovação”, considerou.

Apesar da dificuldade em “definir” o que são estes rituais, o encenador está convicto de que “são formas de combater o inverno”.

“Quer através do divertimento, quer através [do facto de] a comunidade estar junta, quer através da catarse. E depende um pouco da máscara que se usa em cada país, e do que elas também significam para quem a usa”, frisou.

A propósito, citou o exemplo de que, enquanto em Portugal temos as imagens coloridas dos caretos de Podence, nos diabretes, na região da comuna italiana de Ula Tirso, na Sardenha, há uma máscara – que está presente no espetáculo – que é uma cabeça de cabra embalsamada.

Segundo o realizador de “Alice” e "Como Desenhar um Círculo Perfeito", a ideia de fazer este espetáculo surgiu-lhe há perto de quatro anos através da leitura de “Wilder man”, um livro com imagens captadas pelo fotógrafo francês Charles Fréger, a partir de uma recolha de máscaras de toda a Europa.

Após ter tomado contacto com o livro, decidiu iniciar uma viagem e uma pesquisa que o levou a vários países da Europa, nomeadamente à Macedónia, Roménia e Itália. Portugal levou-o a Podence, para conhecer os caretos.

Conhecer “os homens que estavam por detrás das máscaras, o negativo do livro”, assim como as aldeias de regiões muito periféricas e interiores, “onde ainda se realizam os rituais e onde ainda existe uma ligação muito próxima nos locais de produção” foram, segundo Marco Martins, os motivos que o levaram a partir para o trabalho.

À medida que foi viajando e desenvolvendo a pesquisa, “uma série de questões foram contaminando o trabalho”, disse.

“Aquela imagem das máscaras é o que me leva a viajar e, depois, o que eu encontro vai contaminando o espetáculo e, portanto, o espetáculo fala muito desta relação do homem com o animal, do homem com a natureza e de um equilíbrio ancestral quebrado pelo capitalismo e pelas regras do consumo”, frisou.

O mesmo acontece com a manipulação dos animais e das plantas que se torna “cada vez mais complexa, desequilibrando de várias formas esse equilíbrio”, indicou.

Daí que, sem pretender dar respostas ou impor qualquer tipo de moral no espetáculo, Marco Martins considere importante que ele leve o espectador a fazer perguntas que considera “pertinentes”, nomeadamente “voltar a olhar para o universo rural de outra forma”, concluiu.

“Selvagem” é uma ideia original de Renzo Barsotti, com texto e dramaturgia de Marco Martins e Patrícia Portela, a partir dos contributos do elenco.

Com colaboração e apoio dramatúrgico de Alexander Gerner, Charles Fréger, Giovanni Carroni, Rita Cabaço e Vânia Rovisco, a interpretar “Selvagem” estão Andrea Loi, Giuseppe Carai, João Paulo Alves, Luís Meneses, Marco Abbà, Rafael Costa, Riccardo Spanu e Rubens Ortu.

A música é de Miguel Abras, a cenografia, de Fernando Brízio, o projeto, construção e montagem cenográfica, de ArtWorks , o desenho de luz, de Nuno Meira e, a operação de luz, de Ricardo Campos.

“Selvagem” terá três récitas no Grande Auditório da Culturgest: sexta-feira, às 21h00, sábado, às 19h00, e, domingo, às 17h00.

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