Elmano Sancho, autor e encenador, foi buscar a figura bíblica do Messias para encarnar uma personagem contemporânea que faz um retrato lúcido e mordaz da sociedade, sentindo-se impotente para a mudar.

A personagem - que tem por nome Jesus - “depara-se com uma incapacidade de mudar um mundo que é veloz, e que se tornou numa máquina de produção que tortura tudo e todos para uniformizá-los, e ir ao encontro da sociedade que hoje conhecemos”, relatou o também intérprete, em entrevista à agência Lusa.

Último texto a ser escrito da trilogia “A Sagrada Família”, de Elmano Sancho, é a segunda obra a ser encenada e representada - depois de “Maria, a Mãe” - e terá interpretação do autor, de Joana Bárcia e Vicente Wallenstein, com a ´voz-off´ de Ruy de Carvalho, até 30 de outubro, no Teatro da Trindade.

Apesar de terem surgido da mesma necessidade de escrever sobre a família, possuírem elementos comuns, e de terem como ponto de partida o oratório da Sagrada Família, os textos são independentes, ressalvou o autor, sobre a sequência dos espetáculos.

Em “Jesus, o Filho”, Elmano Sancho aborda o transtorno psicológico ‘hikikomori’, assim designado no Japão, e comum sobretudo entre adolescentes, quando se sentem esmagados pelas pressões sociais para terem sucesso na vida.

A incapacidade de comunicar com o outro começa, neste espetáculo, “com a família, que é uma micro-célula da sociedade, e acaba por representá-la num sentido mais lato”, evitando o exterior, “porque deixou de fazer sentido”, avaliou o encenador.

Segundo Elmano Sancho, o fenómeno não é um exclusivo da atualidade, mas com o qual é possível criar uma identificação e relação: “Essa exacerbação da individualidade do eu que nos torna cegos e surdos ao outro, e ao sentido de comunidade que se dilui no tempo, e em que estamos mais isolados uns dos outros”.

Ator, dramaturgo e encenador, começou a escrever sem pensar numa trilogia, no âmbito de uma bolsa atribuída em 2018 pela Direção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas, e pensava apenas num texto sobre Maria e outro sobre José tendo como ponto de partida o oratório da Sagrada Família cristã.

O oratório é uma peça que representa a família e que circula tradicionalmente pelas aldeias, que podem pedir para o acolher durante um dia, e refletir sobre as virtudes de um grupo visto como perfeito.

Optando por manter o arquétipo, Elmano Sancho retirou os nomes, e a personagem principal neste texto - um Jesus contemporâneo – vai deparar-se com um mundo “em que é preciso renovar tudo, inovar constantemente, não inovando nunca, e desvendar tudo e todos, para conseguir dominá-los”, aponta, remetendo esse retrato também para o cenário das redes sociais.

“Isto acontece a nível global. Há uma exigência de as pessoas estarem sempre a ´performar´, e que as pessoas não aguentam. O mistério acaba por desaparecer nesta sociedade da transparência, onde temos de tornar tudo visível para conseguir sobreviver, aparecer, ter significado”, descreve, acrescentando que o constante foco no fluxo informativo “deixa pouca atenção para o resto”.

Mais do que levar uma mensagem ao público, e “sem querer fazer juízos de valor”, Elmano Sancho pretende inquietar. “Procuro sobretudo levantar uma inquietação junto do espectador, que receberá o espetáculo como entender. Talvez seja essa a missão das artes: ser um espelho do mundo, e não um retrato. Ser a poesia que falta à vida real”, resumiu, acreditando que “a arte tem o poder de transformar as mentalidades”.

O último texto da trilogia, “José, o Pai”, deverá ser levado ao palco em setembro e outubro de 2023, concluindo a trilogia, e possivelmente com a edição dos textos, avançou o autor à Lusa.

"Jesus, o Filho" é uma coprodução do Teatro da Trindade Inatel, Loup Solitaire, Casa das Artes de Famalicão e o Teatro Municipal de Bragança.

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