A biografia “O firmamento é negro e não azul. A vida de Luiz Pacheco”, escrita por António Cândido Franco, professor universitário, investigador, autor de vários estudos sobre literatura e cultura portuguesa, é editada pela Quetzal e vai ser publicada no dia 12.
“O meu contacto com Luiz Pacheco [1925-2008] nasceu muito cedo, na adolescência, eu tinha 15 anos quando o vi pela primeira vez numa feira do livro em Lisboa, eu creio que passava o ano de 1972 e a feira do livro era ainda na Avenida da Liberdade”, recordou o biógrafo à Lusa.
Tinha acabado de ser publicado o livro “Exercícios de estilo”, na editorial Estampa, que estava a ser apresentado com algum destaque mediático naquela época.
“O escritor surpreendeu-me porque era alguém que parecia um sem-abrigo, um pedinte, alguém que estava completamente deslocado daquela situação muito séria, que é a apresentação de uma primeira edição de um livro por uma editora, e isso despertou-me uma curiosidade e um interesse muito grandes, porque não fazia ideia na altura que um escritor tivesse uma representação como aquela que me era dada ver”.
Na introdução do livro, António Cândido Franco descreve a imagem que teve então do escritor: “Alto e míope, embrulhava-se num farrapo branco, desmedido para o descarnado e encurvado tronco, prendia as calças na cintura com uma corda e enrolava-as nos joelhos, deixando ao léu parte das pernas esqueléticas. Nos pés, uns sapatos pretos esburacados, sem meias, deixavam-lhe à mostra os tornozelos ossudos e feridos”.
“Um escritor para mim era um homem muito sério, de alguma maneira integrado nas instituições da sociedade, que recebia prémios, que era prestigiado, e aquilo era exatamente o contrário de tudo isto. Isso, de facto, atraiu-me bastante, criou em mim o sentimento de que as coisas não eram lineares, havia desvios em relação ao que nos era ensinado e foi muito importante para um miúdo de 15 anos. E no contexto do Estado Novo, numa época muito repressiva, perceber que havia um escritor que tinha uma liberdade e que se dava a uma liberdade totalmente 'fora da caixa', como se diz, despertou em mim uma atração muito grande”, recorda.
Foi a partir daí que desenvolveu um enorme interesse pela obra e pela vida de Luiz Pacheco, intensificada pela descoberta de que o pai de um amigo de liceu, o escritor Virgílio Martinho, frequentava uma tertúlia literária num café de Lisboa da época, que ficava no Saldanha, com artistas surrealistas e com Luiz Pacheco.
Esta descoberta deu-lhe uma pista para poder seguir e obter mais informações sobre Luiz José Machado Gomes Guerreiro Pacheco, o escritor lisboeta com fama de maldito e libertino.
Mais tarde, no início da idade adulta, fez estudos na área da literatura – é hoje professor da literatura na Universidade de Évora - e acabou por cruzar essa sua primeira curiosidade com os estudos que foi fazendo posteriormente sobre a literatura portuguesa.
“Estes estudos acabaram por dar lugar não uma tese de doutoramento, não a um trabalho académico, mas a uma biografia que resulta de uma investigação que começou na minha adolescência e veio até aos dias de hoje”.
Foi no início dos estudos universitários que começou “a ler com olhos de ler” a literatura de Luiz Pacheco e percebeu que aquela era “uma literatura de autorrepresentação não era uma literatura literária, que fosse feita para ter prestígio, para escrever bem, era uma literatura em que o autor se representava a ele próprio”.
Este foi um segundo patamar inteiramente novo para António Cândido Franco, que estava habituado à escrita dos escritores que escreviam bem e que faziam exercícios de estilo.
“É curioso que o Pacheco tem um livro chamado ‘Exercícios de estilo’, mas os exercícios de estilo do Pacheco são irónicos, aquilo é uma ironia em relação à própria ideia de exercícios de estilo. Os escritores que estavam à volta dele é que eram escritores de exercícios de estilo, que competiam uns com os outros, no sentido de ver qual deles era capaz de escrever melhor”.
“O libertino passeia por Braga” e “Comunidade” são obras exemplares dessa autorrepresentação, “aquilo foi vivido, é a vida dele” e, nesse sentido, constituiu uma novidade para António Cândido Franco.
“Não estava habituado a uma literatura com aquele corpo e com aquela espessura vital e percebi, de facto, uma lição muito forte naquela literatura, que necessitava de uma interpretação que não estava feita e que era preciso ainda fazer, não estávamos habituados a uma literatura com aquela dimensão tão biográfica”.
É por isso, nas palavras do biógrafo, que a vida de Luiz Pacheco se presta tanto a uma biografia, porque ele próprio só escreveu representado a própria vida na escrita, uma obra que, por outro lado, academicamente é “considerada uma obra marginal”, situada “na margem da literatura” e que não pode ser reconhecida como grande literatura.
Segundo António Cândido Franco, que já biografou Mário Cesariny e Agostinho da Silva, esta sua biografia está orientada para perceber a “dimensão absolutamente literária” do trabalho de Luiz Pacheco e da importância que a sua obra tem para a literatura portuguesa.
“Num certo sentido, aponta para aí, para trazer para o cânone da literatura portuguesa o trabalho de Luiz Pacheco, como, por exemplo, autor de um diário de uma importância única, não há outro diário na nossa literatura que tenha aquela importância, não vejo um único diário que seja capaz de ombrear com a dimensão humana que está ali presente naquele trabalho, e isto ainda não foi reconhecido em termos académicos e canónicos, e digamos que é esse o meu objetivo”, afirma.
O título escolhido para o livro é uma frase retirada de uma carta de Mário Cesariny, referente a Luiz Pacheco: “É uma visão do mundo próprio de Luiz Pacheco, um mundo que é negro, não é azul”.
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