Com histórias divertidas, bem escritas, repletas de ação, “gore” e um detetive amaldiçoado que investiga fenómenos diversos no século XIX, a literatura de género portuguesa segue merecendo de ser conhecida. Substituindo cenários os leitores/espectadores estão habituados pelas produções estrangeiras, “O Deus das Moscas” traduzia uma bela reconstituição de época da Lisboa do século XIX.

O fascínio pela pesquisa e pela literatura portuguesa continua em “Assim Falou a Serpente”, desta vez reunindo seis histórias (uma escrita por um autor convidado, Luís Filipe Silva) que levam o atormentado detetive, que alberga dentro dele um demónio do passado, a novos locais. Entre estes está o Porto de Júlio Dinis, cujos personagens de “A Família Inglesa”, inclusive, marcam presença num conto, e o Egipto em consonância com a precisa descrição de Eça de Queirós da sua viagem ao país – descrita em “O Egito”.

Se tudo continuar a correr bem, o detetive pode surgir por diversas outras paragens, como Constantinopla, Rio de Janeiro, Londres, Paris e, aqui mais perto, Óbidos. Em universos mais mundanos, está prevista para breve uma banda desenhada com o personagem, além de um “podcast”.

Os horrores do demónio interior

Personagens com dilemas interiores há muitos, mas pouco devorados literalmente por um demónio como Benjamim Tormenta. Particularmente “dark”, o protagonista carrega dentro de si uma entidade ancestral, Lamashtu, o qual, para o desespero de ambos, não pode ser libertado. Direto da mitologia suméria para importunar o seu hospedeiro, só é anestesiada com doses generosas de álcool ou ópio.

“Todos temos o nosso lado escuro, os nossos demónios”, diz Corte Real. “Neste caso o demónio que vive com Tormenta é um aglomerado de vícios e de tudo que é ruim – é cruel, psicopata, racista, pedófilo. Para além disto, Tormenta tem de enfrentar uma série de monstros e entidades sobrenaturais”, descreve.

Dadas estas condições, podemos imaginar esse detetive um dia a rir ou a contar uma anedota? “Não! De facto não conseguimos imagina-lo a rir – diferente de Lamashtu, mas aí é um riso sarcástico e o humor é negro”.

Assim Falou a Serpente

Super-heróis “sanitizados”

Com os seus parentescos com a cultura popular e outras artes, como o cinema e a BD, as histórias dos dois livros passam longe do mundo sanitizado dos filmes de super-heróis Mais para “Guerra dos Tronos” do que para Marvel, são ficções cheias de “gore”, maldade e violência.

“Eu não queria contar uma história ao estilo dos filmes para crianças, contra os quais não tenho nada contra, claro. Mas é um mundo limpinho, politicamente correto, onde não corre sangue. As minhas histórias têm palavrões, corrupção, ‘gore’ e um lado muito negro”, observa Corte Real.

As misérias e mistérios do século XIX

O imaginário do século XIX sempre atraiu os escritores de ficção – a diferença aqui é que o autor recria o universo, incluindo o submundo, de cidades portuguesas com um passado nem sempre bem conhecido. É o caso da sua inspiração maior, Eça de Queirós, que fazia belíssimas descrições, mas não frequentava o “underground” lisboeta – que obviamente era efervescente num local onde havia pobreza por todos os lados.

Em “Assim Nasceu a Serpente” foi a vez do Porto – que demandava outro luminar da literatura portuguesa como guia. Neste caso, Júlio Dinis e a sua “Família Inglesa”. “Senti que em algum momento havia lugar para aqueles personagens no meu livro, mas transformei aquela história de amor entre um inglês rico e uma portuguesa pobre num conto de terror. Não sei o que Júlio Dinis acharia do que fiz com os seus personagens – talvez esteja às voltas no túmulo!”, brinca.

Já para o Egipto Corte Real volta-se para o seu velho amigo, Eça de Queirós. No seu livro sobre o assunto, uma publicação póstuma lançada em 1926 mas que retratava uma viagem feita ao país das pirâmides em 1873, “Eça fazia descrições maravilhosas de tudo o que via. As ruas do Cairo, as ruelas apertadas, as areias do deserto, as mesquitas, a sua passagem por Gibraltar. Plagiei tudo o que pude!”, conclui.