Para Daniel Gorjão há a expectativa de que o ato político de hoje se torne corrente e adquira normalidade, "daqui por uns anos”, como disse à Lusa, no final de um ensaio da peça "Tudo Sobre a Minha Mãe", a partir do texto de Samuel Adamson, sobre o filme homónimo de Pedro Almodóvar, que se estreia esta quarta-feira no Teatro S. Luiz, em Lisboa, com tradução de Hugo van der Ding.

Pegar em 2023 numa peça que se estreou em 2007, a partir de um filme realizado em 1999, permitiu também levar para o palco “outro olhar” sobre questões que já eram atuais no filme, mas que hoje ganham outra dimensão, afirmou Gorjão, a propósito de ter aberto um 'casting' para a encenação, e de ter encontrado uma atriz trans que pudesse fazer o papel de Agrado, figura antes desempenhada por uma atriz e por um ator gay.

“Não pelo objeto em si, porque não mexemos na história, mas pela forma como percecionamos o objeto à luz do que é a sociedade hoje em dia”, sublinhou o diretor artístico.

A título de exemplo citou o facto de, no filme, a personagem Agrado ter sido interpretada pela atriz Antonia San Juan; na versão do dramaturgo australiano adaptada para teatro e estreada oito anos mais tarde, em 2007, no Old Vic, em Londres, a personagem foi desempenhada por um “ator gay, um homem 'queer'” e, na versão que agora dirige, quase 24 anos após a estreia em filme, ser interpretada por uma mulher trans.

Tudo Sobre a Minha Mãe
créditos: estellevalentephotography

Apesar de se contar sempre a mesma história, esta sofre alterações de perceção, de inclusão e de representatividade ao longo do tempo. Por isso, é “muito importante” que Agrado seja agora representada por Gaya de Medeiros, disse.

Podia "ser outra atriz qualquer, 'cis' ou um homem gay travestido, mas, neste momento, em que essa questão é tão aberta na nossa sociedade, e em que o acesso de minorias ao mercado de trabalho e a sua representatividade está tão na ordem do dia, foi muito importante abrir um 'casting' e encontrar uma atriz trans que pudesse fazer o papel”, frisou.

O facto de, no futuro, "escolher Gaya de Medeiros não ser um 'statement', mas ser normal", e de poder vir a escolhê-la "para fazer qualquer papel feminino”, é vontade do encenador que, no entanto, admite uma necessidade de "mudança em consciência, com ação e 'step by step'”, por só assim ter "consistência", disse Daniel Gorjão à Lusa.

Por estar ciente de “estarmos a viver no tempo da mudança e a senti-la”, o diretor artístico da peça entende que, por ter “um lugar de privilégio”, se sente na obrigação de fazer escolhas.

Assim, afirma que gostaria que o papel de Lola também tivesse sido interpretado por uma mulher trans, o que “em termos de produção não foi possível, já que o ator teve de se desdobrar em mais do que um papel”.

Agrado
'Tudo Sobre a Minha Mãe', de Pedro Almodóvar

“Mas se há possibilidade de o fazer, pois então vamos fazê-lo”, porque também é “nossa obrigação dar corpo e voz a outros corpos”, uma constante no trabalho realizado tanto no Teatro do Vão como no de programador.

O elenco de "Tudo Sobre a Minha Mãe" conta com Sílvia Filipe a interpretar Manuela, Maria João Luís, como Huma Rojo, e Gaya de Medeiros no papel de Agrado, aos quais se juntam André Patrício, Catarina Wallenstein, Filipa Leão, Filipa Matta, João Candeias Luís, João Sá Nogueira, Maria João Vicente e Teresa Tavares.

"Tudo Sobre a Minha Mãe" estreia-se esta quarta-feira, no Teatro S. Luiz, em Lisboa, e estará em cena na sala Luis Miguel Cintra até 22 de janeiro de 2023.

As sessões decorrem de quarta-feira a sábado, às 20h00, e, ao domingo, às 17h30. No dia 20 de janeiro, a sessão terá tradução em Língua Gestual Portuguesa e, nos dias 20 e 22, haverá audiodescrição.

De 27 a 29 de janeiro, a peça subirá ao palco do Teatro Municipal do Porto – Campo Alegre.

Com direção artística de Daniel Gorjão e assistência de encenação de João Candeias Luís e Filipa Leão, “Tudo sobre a minha mãe” tem tradução para português de Hugo van der Ding.

A sonoplastia e desenho de som são de Miguel Lucas Mendes, a captação de vídeo de João Garrinhas /Outros Ângulos, e o projeto de cenografia de Bruno Terras da Motta.