As mães estão sempre certas. Bom, pelo menos a mãe de Cícero Rosa Lins não poderia estar mais certa quando o batizou com um nome que significa “o que planta sementes”. Ele não só as planta, como as rega e faz romper. Ontem à noite, quem esteve no MusicBox para o ver, certamente regressou a casa com uma, ou mais, sementes no coração.

“Fuga nº3 da Rua Nestor” e “Vagalumes Cegos” foram as primeiras a ser lançadas à terra (e que latifúndio de gente era aquele!). Talvez seja preciso recuar um bom bocado na história para ver o MusicBox tão bem composto. Apesar da sua entrada de mansinho, Cícero não demorou para confessar que «é realmente impressionante tocar do outro lado do oceano». Para nós também foi realmente impressionante estar do outro lado do cenário, abrindo brecha ao feitiço lançado pela varinha do cantautor brasileiro. É impossível ficar-se-lhe indiferente.

Embora encontremos algumas diferenças entre “Canções de Apartamento” (2012) e “Sábado” (2013), em particular no que toca à extinção dos agudos na passagem do primeiro para o segundo, não conseguimos dizer qual dos dois álbuns nos delicia mais. A doçura é sintoma paradigmático em Cícero. Talvez por isso, “Açúcar ou Adoçante” tenha sido, com grande probabilidade, o melhor momento da noite de ontem. Dizemos “com grande probabilidade” porque não há como contornar o requinte de “Porta, Retrato” e de “Tempo de Pipa”.

Cícero decreta as fronteiras que distinguem uma voz repleta de musicalidade da chamada “grande voz”. Aliás, não só a voz. Todo ele emana essa musicalidade. Basta perder dois ou três minutos a observar a expressividade das suas caretas, os trejeitos carregados das sobrancelhas e o espírito profundamente absorto que enverga ao cantar. Os bordões da guitarra são um dos princípios da sua fórmula. O arpejo e o dedilhado são invariavelmente simples, mas suficientemente arrebatadores. Esta é a base. O resto fica ao critério da distorção q.b., do batuque versátil, do baixo discreto mas fundamental e dos keyboards escrupulosos. As sementes de Cícero atingem facilmente o ponto-de-rebuçado.

Ao contrário daquilo a que o MusicBox nos tem habituado, o jogo de luzes praticado no concerto de ontem foi determinante para a criação de uma atmosfera sem mácula. Para ela, contribuiu também o sorriso nada amarelo de Cícero, que, apesar de pouco interventivo, foi sempre carismático e afável. «Estou nervoso mas estou bastante feliz», atirou, arrancando uma ovação do público. Estava com tanto receio de nos aborrecer, que até nos pediu autorização para tocar «só mais uma calminha». Calminhas ou mexidas, as suas músicas revelam, acima de tudo, um equilíbrio invulgar. Mesmo quietos e expectantes, estamos em constante estupefação perante a ternura da sua sonoridade.

«Quando você voltar para casa, pequena, não há tristeza que valha a pena.» Venham mais destes.

Fotografias de Débora Lino.

 

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