A história da fotografia passa por inúmeras etapas – decorrentes desde o mais remoto desejo do homem de reproduzir a natureza e encontrando-se com o poderio técnico da 2.ª vaga da Revolução Industrial do final do século XIX. Pouco depois, a Kodak lançava uma máquina que todos podiam manusear, enquanto os artistas e as vanguardas se apropriavam do meio para as mais diversas experiências. Com a era digital as fotografias, tornaram-se ainda mais uma parte indissociável do mundo em que vivemos. Uma história fascinante, que tem nesta conversa com Luís Mendonça uma breve introdução.
SAPO Mag - Podemos começar com essa obsessão muito humana de querer reproduzir e fixar o “mundo real”… É um processo que começa na pintura, depois surge a fotografia e continua com o cinema e as imagens em movimento…
Luís Mendonça - Sim. No caso do livro a ideia neste sentido não é muito original – existem já diversos estudos que de alguma forma apontam que o primeiro grande fotógrafo existente foi o “homem de Cro-Magnon” – portanto um dos nossos ilustres antepassados. As pinturas rupestres chegam, inclusive, a transmitir uma noção de movimento.
Baseado nestes sonhos do homem pré-histórico, eu queria passar a noção de que, antes de ser uma técnica, fotografia e cinema eram uma “ideia”. Hoje em dia falamos em desmaterialização do cinema, uma espécie de arte sem corpo transformada em “zeros” e “uns”. Achei que era interessante começar por aí. No início era só imagem, um fantasma, e a agora com o digital voltamos a essa dimensão – para mim faz sentido essa ideia de um ciclo que se fecha.
Tal como o cinema, a fotografia é, inicialmente, um produto da técnica, da indústria, e não dos artistas…
No século XIX essa ideia (fixar imagens) transforma-se num dispositivo, numa indústria. É a altura da ascensão de uma nova classe, a da burguesia, assombrada pelos seus novos “gadgets” – imagina nunca terem visto um avião, um carro, um filme. Na origem disto tudo estão cientistas com uma pulsão empreendedora e também artística.
A fotografia nasce numa intersecção de diferentes dimensões da sociedade – a ciência, a psicanálise, uma dimensão profana e também mágica. Para além dos retratos, por exemplo, havia fotografias de retratos dos mortos – uma questão que tem uma abordagem interessante no filme “Os Outros”.
E depois surge Eastmann e a popularização das máquinas fotográficas…
Sim, no início só os ricos podiam ser fotografados. Depois com a Kodak há uma democratização do acesso à tecnologia fotográfica, há a invenção dos rolos e qualquer um podia manuseá-las. Até havia uma publicidade terrível na altura que dizia que ‘era tão fácil que até as mulheres e as crianças conseguiam tirar fotografias!’.
Aliás, ao contrário do cinema, as mulheres tiveram uma participação muito mais igualitária no universo da fotografia.
Sim, houve várias mulheres cruciais na história da fotografia e pude abordá-las no livro sem estar preocupado com preenchimento de quotas. Mesmo no século XIX já se encontram nomes importantes, como Julia Margaret Cameron, umas das pioneiras no uso do “close-up”. No século XX elas permeiam toda a História, como Diane Arbus, Claude Cahun, Lee Miller e muitas outras. Há o caso de Vivian Maier, que viveu no anonimato e agora todas os anos saem livros com as suas fotografias.
E, a partir de um certo momento, começa a fazer-se arte…
Isso é muito engraçado e parte deste processo deve-se a Eugène Atget. Ele era um fotógrafo que documentava uma Paris que estava a desaparecer, que nós vemos nas suas imagens como misteriosa e enigmática. Ele levantava-se muito cedo e ia para as ruas vazias, fotografando montras e espaços com um longo tempo de exposição.
Atget não tinha qualquer intenção de fazer arte e foram necessárias pessoas mais jovens, mais sensíveis à arte que perceberam que estas imagens, afinal, não estavam isentas de imaginação. Berenice Abbott, que era assistente de Man Ray e tornar-se-ia, ela própria, numa fotógrafa importante, estava em Paris nesta altura e fez um pioneiro trabalho de curadoria ao perceber a importância daquelas imagens.
Ela conheceu Atget, um senhor muito idoso, misterioso, que lhe dizia que “não fazia arte”. Ele morre pouco tempo depois e ela leva parte do seu espólio para os Estados Unidos onde, aos poucos, começa a ser publicado. Ele passou a ser uma espécie de ‘pai espiritual’ invisível de uma era – sem nunca ter sonhado o impacte que iria ter. Hoje não é possível imaginar a fotografia do século XX sem ele, nem sequer Walter Evans, um dos maiores de sempre.
Por fim ocorre a apropriação pelas vanguardas…
A fotografia explode com as vanguardas, especialmente com o surrealismo que é muito mais importante na fotografia do que no cinema. E nisto há um mistério intrínseco: como aqueles senhores aficionados por associações livres, delírios, alucinações, carnalidade, se apropriaram de um instrumento técnico, frio, sem imaginação – onde a própria lente chamava-se objetiva. A verdade é que, pelo contrário, havia uma dimensão libertadora, do acidente – ao contrário do cinema.
Hoje temos, para além da “desmaterialização” da imagem que mencionou, uma ampla expansão das possibilidades. Acha que se está a ver um excesso neste sentido?
É uma grande questão, que fecha o livro. O Daniel Blaufuks, por exemplo, acha que fotografar perdeu o sentido nesta avalanche de imagens e prefere trabalhar com arquivos. Eu não sei se isso tudo é mau e também não acho que a fotografia tenha perdido tanta força assim.
A meio do livro escolheu como ilustração algumas fotografias que considera estar entre as mais importantes…
O critério foram mais a importância histórica das fotografias do que o facto de eu gostar delas ou de serem de fotógrafos importantes. Algumas foram, inclusive mal feitas. Depois há casos como o de Jacob Riis, um fotógrafo dinamarquês que foi aos Estados Unidos documentar a vida dos imigrantes, que viviam em bairros de lata. Ele não era um fotógrafo nem tinha um particular dom no manejo da máquina, ele fez as fotos porque achava que ninguém ia acreditar o quão pobre era a vida daquelas pessoas.
Ele nem sequer tinha luz, inventou uma espécie de “flash”, dos mais arcaicos – ele encandecia pólvora numa frigideira e tinha que coordenar isso enquanto tentava seus modelos desprevenidos. Assim as imagens estão todas queimadas e quando ele fotografa ouvia-se o disparo da pólvora e percebe-se o olhar de espanto dos fotografados. Mas as imagens são poderosíssimas, contém a própria vertigem dele, que tinha de tirar a foto e fugir, pois eram vizinhanças muito mal frequentadas!
Depois tem há casos como o do Weegee, um fotógrafo ucraniano que fotografava os crimes nas ruas de Nova Iorque e tinha uma visão muito mais cínica do mundo. É uma história de vida solitária na noite, onde chegava frequentemente aos locais do crime primeiro que os outros e acaba por fazer um comentário jocoso sobre as tragédias que documenta.
A partir dos anos 80 também houve fotografias vendidas em leilões por grandes somas…
Sim, a partir dos anos 70 os fotógrafos, tal como os cineastas, começam a dar-se conta da história que os antecede e a fotografia toma novos rumos. Um deles foi este – começamos com aquele senhor desajeitado a tirar fotos de Paris para acabarmos com fotografias de milionários a vender eleições. Gregory Crewdson, por exemplo, tem equipas para a tirar uma única fotografia maiores do que algumas produções de cinema.
Já a foto de capa do livro não é de um fotógrafo, mas de August Strindberg…
Na verdade a escolha da capa, que às vezes é um pesadelo, até foi fácil. Toda a gente conhece o Strindberg como dramaturgo, mas poucos sabem que ele fez fotografia. Ele não é certamente alguém que faça parte da história do meio. Na altura que descobri essas imagens gostei muito da ligação entre o muito próximo e o muito distante. É alguém que quer fotografar o Cosmos.
Ele então colocou a câmara ao ar livre, para fazer uma fotografia direta e deixou que a imagem se revelasse por si. Ele estava à espera de atingir a luz natural e ter uma imagem perfeita das estrelas. O resultado foram imagens com cores profundamente térreas, como se ele quiser fotografar o “mais além” e terminasse por obter imagens que podiam ter sido retiradas do “fundo da Terra”. Gostei muito desta dimensão cósmica e tátil, com cores loucas e vivacidade impressionante.
Ele deve ter ficado dececionado com o resultado…
Provavelmente! Talvez a sua sensibilidade permitisse ele apreciar o resultado, mas o mais provável é ter ficado dececionado. A história da fotografia está cheia disto, destes pequenos acidentes.
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