“Aquele texto tem uma escrita própria. Tem tudo aquilo que nós em teatro consideramos necessário para tornar as coisas profundas”, disse Rogério Carvalho, numa entrevista à agência Lusa, a propósito da apresentação da peça estreada em julho último, no âmbito da 36.ª edição do Festival de Almada, onde foi apresentada com lotação quase sempre esgotada, e que agora regressa integrada na programação regular do teatro.

A mensagem que o químico e escritor italiano de origem judaica, prisioneiro dos campos de extermínio nazis, sobrevivente de Auschwitz-Birkenau, deixou para as gerações vindouras naquela obra autobiográfica foi outro dos motivos que levou Rogério de Carvalho até à obra.

O encenador concebeu assim um monólogo, aqui interpretado por Cláudio da Silva, no qual o ator incorpora personagens que vão do narrador (autor), a companheiros de prisão, mas também aos “carrascos” nazis.

O início da peça estabelece desde logo o contexto da ação: “Foi uma sorte para mim ter sido deportado para Auschwitz só em 1944, depois de o governo alemão, devido à crescente escassez de mão-de-obra, ter decidido prolongar a vida dos prisioneiros a eliminar”, afirma o ator em cena.

A partir daqui, 11 etapas se sucedem, desde “A viagem”, quando Primo Levi foi capturado pela milícia fascista, em 13 de dezembro de 1943, como membro de uma pequena brigada de 'partigiani': “No fundo”, “O vestíbulo do Inferno” (como o autor lhe chama no texto, onde os prisioneiros eram fechados), “Ka-be” (a enfermaria), “As nossas noites”, “Exame de química”, “Os acontecimentos do Verão”, “Outubro de 1944”, “ Die drei leute vom labor” ("Os três detidos escolhidos para o laboratório"), “O último” e “História de dez dias”.

Rogério de Carvalho decidiu trazer "Se isto é um homem" para os palcos portugueses, pela primeira vez, depois de “não ter ficado agradado” com o que viu da peça feita por autores estrangeiros (em inglês, feita por Antony Sher, e na Suécia, encenada por Lars Norén), como disse à Lusa.

Entre a captura de Primo Levi pelas milícias fascistas, em 1944, e 27 de janeiro de 1945, quando as tropas russas chegam ao campo de extermínio e libertam os prisioneiros, Cláudio da Silva vai-se transfigurando à medida que vai interpretando um ror de personagens, num texto que considera de uma intensidade psicológica incomensurável e que, depois de o dizer, “sente uma espécie de esvaziar, de libertar”.

“Tenho a sensação de que, às vezes, fico um bocado vazio no fim, pela experiência que vivo em palco”, disse o ator à Lusa.

Este não é o primeiro monólogo de Cláudio da Silva. O ator esteve sozinho em cena com "O papagaio de Céline", de João Samões, a partir da “Viagem ao Fim da Noite”, de Céline e, no cinema, assumiu o "Filme de Desassossego", de João Botelho, a partir do "Livro de Desassossego", de Fernando Pessoa/Bernardo Soares.

Nesta peça, à semelhança do que já aconteceu noutros casos, o ator confessa viver “uma experiência humana, com pessoas, várias, que vêm ver um acontecimento humano”.

“É isto que o teatro pede”, frisou o ator, sem deixar de sublinhar a atualidade da obra, e como “se apresenta como uma memória imprescindível”, face ao momentos que vivemos.

“Num tempo em que vivemos o crescimento da intolerância, o crescimento do fascismo, do nacionalismo, da discriminação, penso que este texto nos coloca num lugar de perguntar o que é um ser humano”, sublinhou.

“E se estas pessoas ainda eram seres humanos”, já que, entre outras coisas que lhes foram retiradas de forma brutal, disse, também lhes foi retirada “a linguagem”. E impõe-se a questão “se queremos que isto venha a acontecer outra vez”.

“Porque há pessoas que querem que isto volte a acontecer, e isso é preocupante”, afirmou o ator à Lusa.

Durante “muito tempo, essas pessoas não se manifestavam com essas intenções, e cada dia [que passa] está mais evidente, parece mais desbocada essa intenção”, sublinhou, enfatizando ainda a forma como “isso é dito e não é punido, nem rechaçado, quase como se tivéssemos medo de dizer que não a isso”.

“Porque vamos aceitando… Os Trumps começam a crescer, os Bolsonaros, os Erdogans... Em Portugal começam a crescer os 'chegas' e as pessoas começam todas a manifestar-se contra os refugiados e isso não é rechaçado, e aí tona-se preocupante, porque é fácil essas coisas imporem-se”, prosseguiu.

"E não se pode usar o argumento de se ser democrático para se aceitar tudo. Porque o que é 'anti-tudo' não pode ser aceite dentro do tudo”, concluiu Cláudio da Silva.

Em cena até 15 de dezembro, “Se isto é um homem” tem espetáculos às quartas-feiras, às 19:00, às quintas-feiras e sábados, às 21:00, e, aos domingos, às 17:00.

Numa cenografia de Manuel Graça Dias e Egas José Vieira, com tradução de Simonetta Neto, luz de Guilherme Frazão, som de Miguel Laureano, pintura de cena de Diogo Costa, e com Marcos Trindade na assistência de encenação, Cláudio da Silva 'mergulha', ao longo de hora e meia, em vários registos.

E para sair de um registo, desde o inicial, de narrador, até chegar ao fim da peça, "é preciso estar mesmo empapado da lama toda", disse Rogério de Carvalho, num elogio ao trabalho do ator "que dá a palavra" de Primo Levi a ouvir.