Não podia ser mais oportuna, a estreia da nova aposta da HBO Max: "The Girls on the Bus" chega precisamente no dia de uma greve histórica dos jornalistas - esta quinta-feira, 14 de março - e numa altura em que Portugal ainda faz o rescaldo das eleições legislativas, também estas marcantes por vários (e conturbados) motivos.

"Estamos a viver num mundo em que metade do país não acredita em nada do que lê e a confiança nos meios de comunicação social está em mínimos históricos", lamenta Amy Chozick, a criadora da série, ao SAPO Mag numa mesa-redonda via Zoom. O país a que se refere é o dela, os EUA, mas não se pode dizer que seja o único a sofrer as consequência das "inverdades" (esse eufemismo tão da ordem do dia) que se têm alastrado em várias frentes, da televisão às redes sociais. E também têm, em alguns casos, influenciado eleições (ou dinamitado, dirão muitos).

Amy Chozick
Amy Chozick créditos: Lusa

De acordo com a escritora e jornalista que se aventurou numa primeira experiência televisiva, este contexto torna premente um drama político como "The Girls on the Bus", inspirado num capítulo do seu livro "Chasing Hillary" (2018), relato da cobertura da campanha eleitoral de Hillary Clinton às presidenciais norte-americanas, em 2016, da qual fez parte.

"Fui repórter do New York Times durante 20 anos, por isso trouxe muitas das minhas experiências pessoais. Também tivemos a sorte de ter outro jornalista na nossa sala de argumentistas que também tinha estado no Wall Street Journal e no New York Times", conta.

"Sabíamos desde o início que ninguém quer reviver 2016. 2016 foi uma eleição marcante pelos temas e as coisas que aprendemos, tanto nos media como na forma como vemos as mulheres poderosas e na fragilidade da nossa democracia", assinala, lembrando a corrida à Casa Branca da qual Donald Trump saiu vencedor. "Penso que muitos dos grandes temas que aprendemos e que ainda estamos a processar como país surgiram das eleições de 2016, e estão profundamente enraizados na série, esperemos."

The Girls on the Bus

"Estas mulheres dão genuinamente as suas vidas para encontrar a verdade"

Ao contrário do livro, a série opta pela ficção em vez da realidade. Ao longo de dez episódios, acompanha a jornada de quatro jornalistas, interpretadas por Melissa Benoist, Carla Gugino, Christina Elmore e Natasha Behnam. Brandon Scott, Scott Foley e Griffin Dunne também fazem parte do elenco e Jesse Peretz ("Girls", "O Idiota do Nosso Irmão") é o realizador do primeiro capítulo (já disponível na HBO Max, tal como o segundo, e o restantes chegarão nas próximas quintas-feiras).

"Tive muita sorte por o livro ter ido parar à Warner Brothers e depois ao Greg Berlanti e à Sarah Schechter [dois dos produtores executivos], que queriam adaptar o capítulo chamado 'Girls on the Bus' para um cenário fictício com umas primárias fictícias, com mulheres que se tornam amigas e que cobrem um candidato presidencial fictício", recorda Chozick.

"E depois tenho de dar o devido crédito à Julie Plec [cocriadora e produtora executiva da série], pornão me ter dito 'Oh, tu és apenas a autora, vou pegar no teu livro e fazer a minha cena com ele'. Julie é, de facto, muito conhecida em Hollywood como mentora. Mentora de jovens guionistas, mulheres guionistas de minorias. E ela tem sido espantosa, trouxe-me para dentro de casa, ensinou-me tudo, e depois aprendi tudo sobre a condução de programas com a Rena [Mimoun, produtora executiva]. Sinto que tive uma masterclass. E, no final do processo, consegui participar em todas as reuniões, compreender uma reunião de orçamento, preparar-me e coordenar-me com todas estas pessoas. Mas tenho de reconhecer o mérito destas duas mulheres por serem mentoras incríveis", elogia.

The Girls on the Bus

"E é engraçado porque esta série é sobre a família que encontramos e o tipo de amigas que nunca soubemos que precisávamos mas sem as quais não podemos viver", compara. "Penso que a coisa mais importante a mostrar é o quão difícil é o trabalho e como estas mulheres dão genuinamente as suas vidas para encontrar a verdade. E considero muito importante mostrar estas mulheres a sacrificarem as suas relações, os filhos, os maridos. Todas elas têm vidas pessoais em frangalhos porque estão empenhadas neste trabalho. E julgo que isso é vezes esquecido nas críticas aos media."

"Todas as mulheres estavam à espera em casa, com um assado pronto"

Julie Plec, questionada pelo SAPO Mag sobre o que a entusiasmou no livro e mais tarde na série, destaca o retrato de "mulheres que estão a trabalhar arduamente para fazer um trabalho que foi duramente conquistado depois de muitas décadas a ser feito por homens, homens que podiam fazer-se à estrada, regressar a casa e aterrar na pista".

A veterana, cujos créditos de produtora incluem filmes da saga "Gritos" e as séries "Os Diários do Vampiro" (da qual também foi argumentista) ou "Roswell, New Mexico", lembra que "Amy costumava dizer que, historicamente, todas as mulheres estavam à espera em casa, com um assado pronto, quando os seus homens regressavam da campanha". Não por acaso, o título da série deriva de "The Boys on the Bus" (1973), o livro de Timothy Crouse centrado em quatro jornalistas (todos homens) durante uma campanha eleitoral nos EUA.

Julie Plec
Julie Plec créditos: Lusa

"Os homens podiam ser jornalistas duros durante toda a semana e depois aterrar e ser levados para casa e alimentados pelas suas famílias com uma refeição quente na mesa. Era um clube de rapazes. E, no entanto, essas mulheres lutaram para entrar e agora têm de fazer o trabalho que era tão difícil e também fazer o maldito assado, e não são recebidas em casa nos seus dois dias de folga por mês por uma família calorosa e carinhosa. Em vez disso, são recebidas em casa por uma família que se debate, se zanga, se ressente, se emociona e fala de coisas de mulheres. Isso também nem sempre corre muito bem", sublinha.

"Há sempre muito a explorar, pareceu-me uma história sobre, acima de tudo, uma amizade que pode evoluir a partir deste tipo de compromisso intenso com o trabalho. E acho que foi isso que me atraiu tanto: é uma história de amor. É uma história de amor entre quatro mulheres. É uma história de amor entre uma mulher e um candidato. O candidato dela. Não é um amor romântico, um amor idealizado. É uma história de amor sobre uma profissão e mulheres que querem ser o melhor que podem ser. É esse o seu trabalho. E tudo isso são coisas sobre as quais gosto muito de escrever , fez com que fosse absolutamente algo de que eu sabia que queria fazer parte", confessa.

Patrick Fugit, 'Quase Famosos' (2000)
Quase Famosos

Pleck salienta ainda "a ideia de quatro mulheres que não deviam, em circunstância alguma, partilhar notas, comparar fontes, falar sobre o que estão a aprender, porque são todas concorrentes". Afinal, "deviam estar a trair-se umas às outras. Deviam estar a atirar-se umas às outras para debaixo do autocarro. E, no entanto, como este mistério que estão a investigar parece tão importante, estão dispostas a desafiar as convenções jornalísticas tradicionais e a juntarem-se como um grupo e a partilharem cabeçalhos e recursos e investigação e a desafiarem os seus chefes, até certo ponto, para resolverem um mistério".

Amy Chozick revela ainda que esta história de paixão, idealismo, resiliência e sororidade deve alguma coisa a um filme de culto de Cameron Crowe. "A Julie e eu sempre falámos de criar algo como o 'Quase Famosos'. Não sei se se lembram do filme sobre o miúdo que queria ser jornalista musical e que entra no autocarro para seguir esse sonho. Não gostaria que os miúdos ficassem descontentes com o estado do setor e não seguissem esta profissão que adoro e que me deu tanto. Espero que os jovens vejam esta série e pensem que também é um trabalho fixe, porque precisamos disso, a América precisa dos jornalistas". E o resto do mundo também, acrescentamos nós. Esta semana, além de uma greve geral em Portugal, há uma nova série para o relembrar.