"Estamos definitivamente a tocar num ponto nevrálgico de muitos temas - drogas, saúde, dinheiro, lucro - que atravessam a vida americana e sobre os quais muitas pessoas estão a pensar", diz Steve Hely ao SAPO Mag numa entrevista por Zoom. O pretexto para a conversa foi a nova série do norte-americano criada com Joseph Bennett, "Common Side Effects", cujos dois primeiros episódios estão disponíveis na plataforma Max a partir desta segunda-feira, 3 de fevereiro (os restantes chegarão semanalmente).

Num momento em que os EUA atravessam um dos períodos mais conturbados das últimas décadas, a proposta da dupla com a chancela da Adult Swim (casa de "Rick and Morty" ou "Primal") talvez nem pareça assim tão delirante. "Se tivesse sido adiada mais um ano, teria sido demasiado tarde", confessa Bennett, sorridente, ao contrastar esta combinação de comédia e drama inspirada na "incompetência das pessoas e nos grandes sistemas e instituições" com os acontecimentos (alguns inimagináveis) que têm marcado o regresso de Donald Trump ao poder.

Common Side Effects
Common Side Effects

Tão propulsiva como certeira, "Common Side Effects" arranca com a descoberta de um fungo capaz de curar praticamente qualquer doença e não demora muito a colocar em cena um jogo do gato e do rato: Marshall, o responsável pelo achado milagroso, é perseguido pelas grandes empresas farmacêuticas e pelo governo, mas também encontra uma aliada, Frances, antiga colega do liceu que se debate com um conflito interior.

Embora a trama convide a apontar vilões fáceis, os criadores da série estão mais interessados nas contradições das suas personagens, sejam mais ou menos simpáticas, do que em maniqueísmos pré-fabricados. Para a ótima primeira impressão de uma sátira que nunca abdica do lado humano terá contribuído a passagem da dupla por projetos muito diferentes, da comédia à animação: Hely escreveu para David Letterman, a versão americana de "The Office" ou "American Dad", Bennett foi um dos autores da muito elogiada "Scavengers Reign", série animada de ficção científica da qual "Common Side Effects" se aproxima visualmente a espaços. E entre os produtores executivos há nomes marcantes e influentes como Mike Judge ("Beavis and Butt-Head", "Silicon Valley") ou Greg Daniels ("Parks and Recreation", "Upload").

Common Side Effects
Common Side Effects

Dos primeiros quatro episódios, que o SAPO Mag já viu, sobressai a conjugação difícil (mas que aqui parece espontânea) de humor, drama e thriller, capaz de surpreender e de comover. Pelo caminho, há algumas sequências memoráveis, caso dos momentos musicais irresistíveis protagonizados pelos dois polícias que perseguem Marshall. Hely e Bennett recordam-nos como chegaram a esta alquimia:

SAPO MAG - Como é que começaram a pensar numa série de animação para adultos em torno do setor da saúde e da indústria farmacêutica em especial?

Steve Hely - Bem, começámos a falar de algumas personagens que nos inspiraram, os excêntricos que estavam a explorar as fronteiras da medicina e das drogas. Há tipos como o Terence McKenna, o Paul Stamets e o Wade Davis, que é um etnobotânico, e estas pessoas estão à margem, inventam coisas experimentais que talvez não sejam aceites pela grande medicina corporativa. Colocar alguém assim em oposição às grandes forças que controlam e guardam o que usamos para a nossa saúde parece ser um início interessante para um thriller e um thriller de comédia, também, porque este o protagonista é um pouco pateta, um pouco estranho e um pouco fora de si.

Steve Hely
Steve Hely Steve Hely

Joe Bennett - O Steve e eu falámos muito sobre o que aconteceria se houvesse um medicamento que curasse tudo. Qual seria esse medicamento? Falámos muito sobre cogumelos, como os cogumelos são tão estranhos e todo o mundo dos fungos é estranho. Os cogumelos podem matar-nos. Podem curar-nos. Podem fazer-nos ver coisas estranhas. Por vezes, são deliciosos. Mas existem há mais tempo do que nós. Há uma história muito fixe nisso tudo. São coisas muito estranhas e invulgares. Há pessoas que os associam a conspirações alienígenas, dizem que os cogumelos não são deste mundo. Achámos que isso seria um bom complemento e que faria todo o sentido.

SAPO Mag - Quanto tempo passou entre a primeira vez que pensaram nessas ideias e o desenvolvimento da série? Apresentaram logo o conceito à Adult Swim?

Steve Hely - Começámos a falar em 2019, por isso já passaram mais de cinco anos. E houve iterações diferentes. Vendemos uma versão à Amazon, mas eles não perceberam muito bem com o que estávamos a lidar. O Joe fez uma animação brilhante de três minutos que esclarecia o tema e isso despertou algum interesse da Max. Depois houve uma fusão empresarial e a HBO Max passou a fazer parte da Warner Brothers, e a Warner Brothers tem a Adult Swim. Então, tudo se resolveu desta forma que, por vezes, parecia estar a sair dos carris, mas acho que estamos satisfeitos com o resultado final. E estamos satisfeitos por a Adult Swim ter arriscado em algo tão ambicioso.

Common Side Effects
Common Side Effects

SAPO - Em que aspetos diriam que esta série mantém a identidade da Adult Swim? E em que é que difere de outras apostas da casa?

Steve Hely - Bem, não sei se a Adult Swim já teve uma série que é uma longa história que se desenrola em sequência e tem muitas personagens, e à qual é preciso prestar atenção. Normalmente, não é nisso que penso quando penso em séries da Adult Swim. Mas a Adult Swim tem uma grande história de fazer coisas estranhas, coisas que mais ninguém faria, grandes riscos criativos, estilos invulgares, personagens invulgares. Por isso, espero que estejamos a dar continuidade à sua tradição fixe.

SAPO Mag - Vocês vêm de contextos muito diferentes. O Joe está mais ligado à animação. O Steve, mais a sitcoms, mas também a alguma animação. Como aproveitaram todas essas linguagens para colaborar numa visão única e clara, como vemos nestes primeiros episódios, quanto ao tom, ao tipo de personagens e até sobre o facto de não terem vilões óbvios até agora. Até mesmo o CEO, com voz de Mike Judge, é na verdade alguém amigável, não é o CEO estereotipado de outras séries ou filmes.

Steve Hely - Falámos muito. Demos muitos passeios longos e aprofundámos tudo o que estávamos a pensar. O Joe tem muitas vezes uma ideia visual interessante e trabalhámos nesse sentido, ou por vezes partimos da perspetiva de uma personagem e tentámos ver onde isso nos levava. Tenho muito respeito pelo que o Joe está a fazer como realizador, por isso é fácil trabalhar com ele e confiar nele para garantir que o resultado vai ser de um nível extremamente elevado.

Joe Bennett
Joe Bennett Joe Bennett

Joe Bennett - Sim, penso o mesmo. Gosto imenso da escrita do Steve, o que torna tudo muito fácil. Mas sim, estávamos bastante alinhados com muitas personagens que nos interessavam e histórias que eram interessantes e que se centravam na incompetência das pessoas e nos grandes sistemas e instituições. Acho que conseguimos retirar muito humor disso. Mas no que diz respeito ao estilo, eu já tinha feito curtas-metragens de animação antes disto, e acho que o estilo evoluiu com o tempo. Mas trabalhámos com uma equipa de artistas incrível, o que ajudou a moldar e a dar forma à série.

SAPO Mag - Além de dar voz a uma personagem, Mike Judge é um dos produtores executivos. Como se articularam com ele? As séries dele tiveram algum eco em "Common Side Effects"?

Steve Hely - Bom, muitas das obras do Mike são sátiras muito engraçadas da vida e da cultura americanas, mas sempre com algum sentido de simpatia, empatia e humanidade. Ele fez "Silicon Valley", "Idiocracy" ou "King of the Hill" tendo algum amor pelas personagens e pelas situações ridículas em que se encontram. E nós tentámos aprender isso com ele. E tem um ótimo olho para a animação, que consegue manter o olhar do espectador focado em pequenos movimentos que captam muito. E o Joe tem esse mesmo estilo. Portanto, foi uma grande inspiração. Estamos definitivamente a tocar num ponto nevrálgico de muitos temas - drogas, saúde, dinheiro, lucro - que atravessam a vida americana e sobre os quais muitas pessoas estão a pensar.

SAPO Mag - Esta é uma série que podemos continuar a acompanhar nos próximos anos? Ou pensaram-na como aposta de uma temporada só, autocontida?

Steve Hely - Acreditamos que temos muito mais história para contar, e esperamos ter oportunidade de o fazer.

Common Side Effects
Common Side Effects

SAPO Mag - Muito bem. E quais foram as maiores desafios ao fazer uma série como "Common Side Effects" no atual panorama televisivo?

Joe Bennett - Penso que fazer uma série de animação para adultos continua a ser um grande desafio. Especialmente quando se trata de uma série que se situa entre a comédia e o drama, foi uma coisa difícil de fazer. Mas ganhámos a confiança da estação e eles deixaram-nos fazer o que queríamos. Acho que isso tem sempre os seus desafios. Mas também tentámos que tivesse a melhor qualidade e que contasse a melhor história possível. É um programa de televisão, por isso o tempo que temos para o fazer é curto. O Steve e eu tivemos de cortar alguns anos da nossa vida para o fazer. [risos] Esperemos que valha a pena. Esperemos que as pessoas o vejam.

SAPO Mag - Como espectadores, vêem muita televisão? Ou tentam não ver assim tanta para não serem, eventualmente, demasiado influenciados?

Steve Hely - Ambos temos filhos pequenos, o que limita a nossa televisão. Mas acho que muito do que fazemos é falar e recomendar filmes e séries de que gostamos. Se eu visse apenas as coisas sobre as quais o Joe me manda mensagens, seria um trabalho a tempo inteiro. Não só televisão e filmes, mas também pequenas personagens estranhas que estão no YouTube ou Tik Tok sobre um micologista no seu campo ou vídeos de ciência. Estamos a recorrer a tudo o que podemos. Temos os nossos artistas e argumentistas, todos eles descobrem coisas estranhas e partilham-nas connosco.

Joe Bennett - Mas também diria que sinto que tento ser bastante seletivo em relação ao que vejo e ao que consumo. Claro que vejo lixo aqui e ali, mas, na maior parte das vezes, talvez não veja a série super popular que está a sair para não ser influenciado de alguma forma. Sou capaz de ser um pouco mais exigente em relação a isso. Mesmo que a série seja boa, evito-a. Sinto que já é assim há algum tempo.