O Lisbon Blues Fest iniciou-se na passada quinta-feira. Esta é a primeira edição do festival que visa homenagear o blues com a atuação de bandas de renome no estilo, sejam elas nacionais ou internacionais. O TMN ao Vivo foi o local escolhido para acolher o estilo musical que navegou das margens do Mississippi até ao leito do rio Tejo, atracando no Cais do Sodré durante este fim-de-semana. Três noites em que foi possível ver este género musical a desmultiplicar-se nas suas mais variadas vertentes e a inundar a capital com a sua densa vaga azul.

A primeira noite do festival teve entrada livre e foi inaugurada pelos portugueses The Ramblers. O coletivo que já teve o privilégio de abrir um concerto de B.B. King trouxe um blues-rock forte, delineado e bem recortado, apesar de encontrarmos nos meandros das frases de guitarra e das linhas de baixo claras influências de alguns dos nomes incontornáveis do estilo, de Clapton a Vaughan, passando pelos The Doors. Aos poucos, o espaço que reunia pouco mais que uma vintena de pessoas começou a acolher mais alguns aficionados do estilo e também meros curiosos que quiseram escutar as histórias que estas guitarras têm para contar. A primeira noite contou ainda com uma jam session e um elevado sentimento de partilha entre os músicos que nela participaram.

É importante realçar o ambiente calmo e relaxante que se viveu dentro das quatro paredes do TMN ao Vivo ao longo destes três dias. No palco, a luz manteve-se quase sempre estática, simples, sem grandes aparatos, colocando de lado todas as cenografias extravagantes que invadem os palcos da maior parte dos concertos da atualidade. Aqui, o protagonismo esteve todo nas cordas, nos amplificadores, na acústica dos instrumentos e nas caixas torácicas destes trovadores que versam a tristeza e a melancolia.

Para o segundo dia ficou guardada a mais evidente dicotomia de todo o evento: os espanhóis Miki Nérvio & The Bluesmakers opuseram o seu calmo e pacato blues acústico à atuação enérgica e excêntrica do elétrico Carvin Jones e a sua banda. Oriundos de terras Del Rey, mas adotando a linguagem nativa da música que interpretam, os Miki Nérvio & The Bluesmakers apresentaram-se com a formação clássica do Memphis blues, um subgénero – dos mais antigos, segundo os livros – proveniente do Tennessee, que incorpora vários instrumentos para além da viola acústica (mandolim, guitarra dobro, harmónica, kazoo e washboard, para além de outros elementos de percussão). A banda liderada pelo vocalista Miki Nérvio (que se entranha tanto na sua música que a certa altura aparenta estar a tocar um instrumento imaginário) começou a sua carreira a tocar blues-rock, no entanto, decidiu, a dada altura, evoluir – neste caso regredir – para um registo mais ligado às origens do estilo e à sua faceta acústica, característica do período pré-segunda grande guerra.

Toda esta simplicidade acústica traduziu-se num excelente exercício musical onde foi possível encontrar vários momentos de pergunta-resposta entre o kazoo e a harmónica, transparecendo toda a tradição que o blues herdou da música da África Ocidental. Por outro lado, a voz de cana rachada de Miki Nérvio tanto trouxe até nós os cânticos laborais das margens do Mississippi, como os ecos das montanhas do country, embebidos numa performance que não ficou aquém de qualquer intérprete blues oriundo dos Estados Unidos.

Seguiu-se o texano Carvin Jones. O músico, por muitas vezes rotulado como a reincarnação do lendário Jimi Hendrix, não demorou a reforçar tais suspeitas e provou, logo no primeiro tema, o porquê de ser considerado um dos maiores guitarristas blues da atualidade (há quem o coloque entre os melhores de sempre). A verdade é que tal como o génio do rock psicadélico, Carvin Jones trata a sua guitarra por tu e não deixa nada a desejar nas suas performances ao vivo. Vestido com um casaco de lantejoulas e um chapéu ao bom estilo de Stevie Ray Vaughan, o artista vagueou em palco, passeou-se pela plateia, virou a guitarra às avessas, colocou-a ao ombro com se fosse um violino, deu-lhe vida própria e deixou-a a tocar sozinha no chão, e ainda fez poses para as câmaras. Tudo sem perder um pingo que seja da destreza e astúcia que contém nos dedos e que lhe permite uma ligação guitarra-homem fora do comum. Basicamente, Carvin Jones fez a festa, lançou os foguetes, recolheu as canas e deixou uma boa imagem numa prestação onde só faltou mesmo incendiar a guitarra.

O terceiro e último dia do certame esteve todo ele ligado à corrente elétrica com um blues derivado daquele que Chicago viu nascer na fase pós-segunda grande guerra. Os Budda Power Blues abriram a noite e cravaram a segunda marca portuguesa no festival. O power trio de Braga aproveitou a oportunidade para apresentar o seu quarto álbum (“One in a Million”) e fez-se acompanhar de um blues elétrico com as baterias e as guitarras a transpirarem algum do músculo do rock dos noventas. Parte do espetáculo dos Budda Power Blues passa pela interação com o público, e, ao final de meia dúzia de temas, a audiência rendeu-se à postura desafogada e ao sentido de humor do coletivo. Nas entrelinhas das malhas de Budda – guitarrista e vocalista da banda, considerado um dos melhores em solo nacional – foi possível encontrar referências a Hendrix e os aromas dos slows dos Led Zeppelin. Os Budda Power Blues proporcionaram, assim, uma atuação que oscilou entre a densa e profunda melancolia dos blues e a energia vulcânica do rock.

Para a derradeira reta da noite estava guardada uma das atuações mais esperadas do festival. Shirley King não precisa de grandes apresentações. Basta dizer que é filha de B.B. King e que é consequentemente considerada a filha dos blues. O sangue que lhe corre nas veias traz toda a identidade e a herança da música protagonizada pela lenda viva do estilo. A artista fez-se acompanhar do seu saxofonista de serviço e, como banda de suporte, os próprios Budda Power Blues. E se o estilo que nasceu das narrativas da classe trabalhadora e de cânticos espirituais tem como principal característica a tristeza, então Shirley King consegue dar-lhe a volta e impor uma elevada carga de humor nas suas atuações. Foram recorrentes as interações com o público (tal e qual como Carvin Jones, a artista ingressou plateia a dentro e quebrou a barreira da intimidade com os presentes) que destacaram toda a espontaneidade e a capacidade de improvisação da artista que tem como principal inspiração as analogias e eufemismos sexuais presentes no hokum, um dos subgéneros do blues. Puro entretenimento.

Durante a sua atuação foram inevitáveis as referências diretas (Shirley King tocou versões de músicas de B.B. King) e indiretas ao seu pai, mas também a outros artistas incontornáveis do blues, assim como Muddy Waters e Willie Dixon. E ainda sobrou espaço para escutarmos Tina Turner (a artista encerrou o espetáculo com uma versão do tema “Rolling On The River”). O concerto da norte-americana traduziu-se em magnetismo puro. O groove da artista, aliado à sua voz magistral e à presença efusiva em palco, foi um dos fatores decisivos para tornar o concerto memorável, encerrando assim, com chave de ouro, esta primeira edição do Lisbon Blues Fest.

Outros artistas passaram pelo barracão ribeirinho do Cais do Sodré, mas estes em versão gravada, a servirem de música ambiente nos interlúdios dos concertos. Entre outros, foi possível ouvir clássicos de Mississippi Sheiks, Bo Diddley, Leroy Carr & Scrapper Blackwell, T-Bone Walker, Freddie King, Buddy Guy, Ana Popovic e Sonny Boy Williamson.

O Lisbon Blues Fest conseguiu juntar em três noites várias vertentes do blues oriundas de vários países. Um cardápio que ficará certamente na memória de quem escolheu o TMN ao Vivo para passar as noites do fim-de-semana passado e deliciar-se com um dos estilos que está na génese da música pop norte-americana. Do jazz ao R&B, passando pelo rock e aterrando na pop, todos o géneros foram beber algo ao blues. E esse conceito familiar vem explícito numa das frases célebres daquele que foi, sem dúvida, o epicentro do evento organizado no TMN ao Vivo, o lendário B.B. King. “O blues? É a mãe da música americana. É isso que o blues é – a fonte”. Esperemos, então, um regresso rápido desta “mãe” a solos nacionais. Venham mais edições do Lisbon Blues Fest!

Manuel Rodrigues