
“Solitário Surfista”, single do novo álbum que o músico interpretou na noite de ontem e que colocou o Teatro Tivoli ao rubro e a acompanhar desenfreadamente o refrão da música, demonstra bem a devoção que o rapper tem por tal desporto radical e o prazer que sente ao perder-se nas cristas e nos tubos das ondas. Em “Diário Nocturno”, livro que o artista lançou no ano de 2001 e que compila vários textos e pensamentos de sua autoria, podemos encontrar um capítulo exclusivamente dedicado ao mar e à pratica de surf. Por entre prosas e poemas que ilustram esse amor da melhor forma, encontramos referências que vão muito mais além de uma mera paixão e que se traduzem numa necessidade quase vital.
Para além de nos levar até ao seu mundo aquático, Gabriel o Pensador convidou-nos ainda a fumar o “Cachimbo da Paz” com o famoso índio que sofreu na pele as consequências de querer mudar o mundo, e levou-nos a conversar com o Capitão Nascimento (personagem do filme Tropa de Elite), no tema “Nunca Serão”, colocando a nu toda a preocupação com a questão da corrupção na política e na justiça. “Pra Onde Vai” foi servida numa sentida homenagem (como já o tinha sido feito no concerto do Porto) ao estudante português morto num assalto na semana académica do Porto. Arrepiante e ao mesmo tempo avassalador. Grande atitude. É nesta amabilidade e sensibilidade que Gabriel o Pensador soma e multiplica pontos. Humilde, pacato, sem um pingo de maldade ou segunda intenções. E tal ficou vigente no concerto de ontem à noite, quando, apesar das sucessivas falhas técnicas que assolaram o começo de “Solitário Surfista”, o músico se manteve calmo, compreensivo e sorridente. “Sem crise”, como o próprio o diria.
As histórias que Gabriel nos conta trazem autênticas lições de vida e de moral camufladas com as melhores metáforas e eufemismos que o Homem alguma vez criou. Ontem foi possível rir com o “Rap do Feio”, entristecer ao som de “Pátria Que Me Pariu” e cair na profunda melancolia com “O Resto Do Mundo”. Mas o artista não se ficou por aqui. “Palavras Repetidas” realçou, no seu belo e possante refrão, a urgência de amar as pessoas, agora, na eminência de não haver amanhã para o fazer. “Lavagem Cerebral” frisou a ignorância impressa em atitudes e sentimentos racistas, e o belíssimo, mas ao mesmo tempo pesado e intenso, “Astronauta” levou-nos, mais uma vez, a odiarmo-nos a nós próprios enquanto habitantes deste planeta e a invejar viver no “mundo da lua”.
“Boca com Boca”, “Tudo Certo” e “Na Palma Da Mão” foram alguns dos temas que marcaram a passagem pelo novo álbum, “Sem Crise”, que Gabriel lançou recentemente em Portugal, depois de já o ter editado há alguns meses no Brasil. E foi exatamente com a faixa-título que o concerto de ontem à noite começou, um tema leve e despreocupado, ideal para arrancar um alinhamento que se revelaria carregado de reflexões e mensagens à boa imagem do rapper. Donovo registofoi possível ouvir ainda “Linhas Tortas”, um tema que nos conta a génese de Gabriel enquanto letrista e que patenteia toda a simplicidade e a humildade do rapper. Tais episódios podem ser lidos ao pormenor na “introdução” de “Diário Nocturno”, uma história envolvente que remata com a seguinte frase: “minha mente é um livro aberto. É um baú de plantação. É somente uma semente. É só mente e coração”. Palavras para quê? Este é o mesmo Gabriel de sempre, igual a si próprio.
Não faltaram ainda à festa as incontornáveis “Festa da Música Tupiniquim” e “2,3,4,5 Meia 7,8”, as prediletas sessões de improviso, as referências e homenagens a Portugal e ao povo português e, claro, uma reta final pautada pelas vulcânicas “FDP”, “Se Liga Aí” e “Até Quando”.
Este continua a ser o Gabriel que sempre conhecemos. Por maior que seja o intervalo de tempo que nos separe da sua próxima visita, temos a certeza que a personagem que irá surgir em palco será a mesma que conhecemos de ontem, do ano passado, de há dez anos... É essa característica que o faz ser amado no seio dos portugueses e é esse amor que sentimos por ele que o faz sentir-se português. Gabriel, seja você mesmo e, por favor, seja sempre o mesmo!
Manuel Rodrigues
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