
Não é à toa que artistas como Carlos do Carmo conseguem esgotar duas datas no Grande Auditório do Centro Cultural de Belém. Há toda uma longevidade e uma vivência ao serviço da música que o coloca num elevado patamar de respeito e idolatração, lado a lado com a incontornável e intransponível Amália Rodrigues, e outras lendas - vivas e mortas - do Fado. Mas não só. Como nos é dito no folheto informativo distribuído à entrada da sala, através das palavras do jornalista Pedro Rolo Duarte, “Carlos do Carmo está para a música portuguesa como o 25 de abril está para Portugal”. Esta analogia não podia ser mais correta. A verdade é que o artista foi um dos principais responsáveis por quebrar a barreira mais conservadora do Fado e mostrá-lo ao mundo com uma abordagem fresca e livre - um bom exemplo disso foi o facto de nos concertos deste fim-de-semana o músico ter-se feito acompanhar pela Orquestra Sinfónica Portuguesa e pelo artista espanhol Antonio Serrano, exímio tocador de harmónica bocal. Mas nem sempre esta caminhada de Carlos do Carmo foi a mais auspiciosa: as vicissitudes da vida já lhe pregaram várias partidas. Por isso mesmo é que esta celebração - que juntou amigos, conhecidos, curiosos e companheiros desta longa caminhada - não se prendeu com propósitos meramente musicais. Carlos do Carmo celebrou a vida e a alegria de viver. Resta-nos a nós desejar que a vida lhe continue a sorrir durante anos e anos, para que a sua voz nos continue a proporcionar momentos como aquele vivido dentro das quatro paredes do Grande Auditório do Centro Cultural.
Pouco depois da hora marcada, José Manuel Neto (guitarra portuguesa), Carlos Manuel Proença (viola) e José Marino de Freitas (baixo) assumiram as suas posições do lado direito do palco. Logo a seguir, foi a vez de Carlos do Carmo entrar em cena e ser recebido pelos aplausos da plateia, que se dividiu por várias idades (com a terceira a ser a mais abundante). Sem demoras, e com um início contido em palavras, mas recheado de acenos, abraços e outras demonstrações de carinho para com o público, o músico deu início ao concerto com “Vim Para o Fado” e “Nasceu Assim, Cresceu Assim”.
Primeira paragem para agradecer o mimo das pessoas que encheram as duas datas em Belém: “Quanto mais gosto de vocês, mais paixão sinto pelo que canto. Enquanto puder, tudo farei para continuar a fazer e a tocar música”, confessa, antes de interpretar "Júlia Florista”. No final do tema, o véu translúcido que separava Carlos do Carmo e a Orquestra Sinfónica Portuguesa - que já tinha ocupado as suas posições em palco antes do início do concerto - levantou-se e revelou os vários naipes de cordas que deram alma a canções como "Duas Lágrimas de Orvalho", "Cacilheiro", "Por Morrer Uma Andorinha", "Fado Penélope” e "Canoa do Tejo", com esta última a beneficiar em larga escala dos arranjos sinfónicos.
“Ontem esteve cá o meu médico e bebi água a noite inteira; hoje, que ele não está cá, podia ter aproveitado para beber o meu whiskyzinho, mas não vale fazer batota… Por isso, continuo na água", confessa o artista antes de apresentar Antonio Serrano, aquele que é considerado, ainda nas palavras do próprio, "o melhor tocador de harmónica bocal do mundo”. "Fado Ultramar” foi a primeira de um estudado leque de canções a beneficiar do contributo do músico espanhol. E diga-se que os dois talentos se fundiram na perfeição. A voz melosa e aconchegante de Carlos do Carmo casou na perfeição com as melodias da harmónica de Serrano e caminharam as duas de braço dado numa estrada harmoniosa. No final da canção, não foram poupados aplausos a este grandioso momento musical.
José Maria Nóbrega foi o segundo convidado da noite. Companheiro musical de Carlos do Carmo há 45 anos (“viajámos em conjunto nos cinco continentes”, relembra o anfitrião), o violista deu corda a ”Lisboa Oxalá" e mataram-se saudades em palco. "Está na moda escreverem-se biografias. Se este senhor escrevesse a minha, a minha reputação ficava para sempre abalada. Mas ele não o vai fazer", garantiu Carlos do Carmo em jeito trocista, já no final da canção. Mas as memórias não ficaram por aqui. Pouco depois, “O Sol” serviu de homenagem ao grandioso Bernardo Sassetti, com nova participação de Antonio Serrano, e "Olhos Garotos” à falecida mãe, com direito a uma confissão pública: "Este era o Fado do repertório dela que eu e o meu pai mais gostávamos".
As manifestações de carinho entre o palco e a plateia não pararam. Do lado de cá, o público desfez-se em aplausos a cada música do alinhamento que o fadista apresentava. Do lado de lá, Carlos do Carmo correspondia com a maior simpatia e humildade. “O meu amigo Júlio Pomar alerta-me sempre: vê lá não te ponhas vaidoso. E ainda bem que eu não tenho tendência em pôr-me vaidoso, senão estava bem tramado, porque vocês dão cabo de mim”, confessa a dada altura do concerto.
Tempo de agradecimentos. O primeiro foi dirigido à esplendorosa orquestra dirigida pelo maestro Vasco Pearce de Azevedo. "Vou fazer uma confissão que não fiz ontem, e que não vou poder fazer amanhã, pois já não serei eu a pisar este palco: esta orquestra ofereceu-se e deu-me como presente nestas noites tocar para mim gratuitamente. Nos dias que correm, não é pouca coisa. Este gesto vou levar comigo”, revelou o músico. Um grande gesto que foi, como seria de esperar, correspondido pelo devido reconhecimento por parte da audiência. O segundo foi dirigido ao magnífico trio de guitarras que serviu de cama às letras do fadista. “Estão a ver aquela sensação que uma pessoa tem de estar sentada no sofá com auscultadores a ouvir música? É a sensação que estou a ter agora em cima do palco, parece que pus os auscultadores… Só preciso de ir cantando por cima…”, partilhou. O último agradecimento foi para os maravilhosos poetas que têm acompanhado Carlos do Carmo nestes 50 anos. E foi com “Homem na Cidade”, poema lindíssimo escrito em 1976 por José Carlos Ary dos Santos, que o concerto teve a sua continuidade, novamente com Antonio Serrano a fazer as delícias na harmónica bocal.
Seguiram-se os temas “Fado do 112”, com o músico a convidar os presentes a partirem para a porrada - “mas uma porrada sem violência; porrada através de palavras” - e “Bairro Alto”, com o público a corresponder no refrão à segunda tentativa. "Canto sem óculos, não vos vejo. Não faço a mínima ideia de quem está na plateia, às vezes vêm falar comigo a reclamar do facto de eu não responder quando me acenam ou fazem sinais, mas a verdade é que não vos consigo ver. O facto de cantar sem óculos ajuda-me a sentir-vos melhor, os silêncios, as respirações, os aplausos. E a forma como cantam. Vocês cantam muito bem”, elogia o fadista.
Já na reta final do concerto, foi a vez de “Canoa do Tejo” (“é normal os artistas começarem a sua carreira a interpretar canções dos outros, mas este foi o primeiro êxito de sempre a ser escrito para mim, por Frederico de Brito”) tomar o seu devido lugar nas escolhas do músico, seguido de “Vou Contigo, Coração”, fado de Alfredo Marceneiro. "Lisboa Menina e Moça” encerrou o alinhamento sob os coros de uma plateia rendida, não só ao talento do músico - aos 74 anos mantém a sua voz firme e não falha uma nota -, mas também à sua personalidade.
Para o curto encore ficaram os agradecimentos à equipa técnica e ao CCB e duas canções-símbolo do Fado. Primeiro, ”Fado Cravo”, com o músico a cantar na boca de palco, sem recurso à amplificação do microfone, transformando o Grande Auditório do CCB numa gigantesca casa de fado; a segunda, “Gaivota”, uma canção já algo cansada, mas que ganha uma nova vida e uma nova alma na voz de Carlos do Carmo. “Esta é mesmo a última, que eu ontem também cantei muitas e convinha-me conseguir cantar para o ano”, remata antes de se atirar à letra da canção e encerrar este fim-de-semana de celebração.
Assim foram festejadas estas bodas de ouro. Carlos do Carmo cantou, encantou, não deixou ninguém indiferente. “Estou sem palavras”, exclamava um elemento no público ao abandonar o auditório. Palavras para quê? Carlos do Carmo é o Fado, na primeira pessoa. E como tal, beneficia do nosso precioso silêncio.
Manuel Rodrigues
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