Conhecido por filmes tão diferentes como "A Guerra do Fogo" (1981), "O Nome da Rosa" (1986), "Sete Anos no Tibete" (1997) ou "Inimigo às Portas" (2001), Jean-Jacques Annaud regressa cinco anos depois de "A Hora do Lobo" (2015) com um dos seus projetos mais ambiciosos. O que não é dizer pouco, já que a ambição (conjugada com grandiosidade) é indissociável de boa parte da obra do francês, nem sempre reconhecida pelos seus pares (nem pelos críticos) conterrâneos ao longo de uma carreira de mais de 50 anos. E é o próprio que o admite em entrevista ao SAPO Mag durante uma passagem recente por Lisboa, nas vésperas da estreia de "Notre-Dame em Chamas", que chega às salas esta quinta-feira.
Centrado no incêndio que ameaçou destruir a emblemática catedral parisiense, a 15 de abril de 2019, parte de relatos de bombeiros, polícias e outros intervenientes de um dia conturbado, assim como de pontuais imagens de arquivo, para moldar uma ficção alinhada com os códigos do thriller - devidamente sublinhados pela banda sonora periclitante de Simon Franglen, a acompanhar situações-limites vividas por várias personagens.
Escrita a quatro mãos com Thomas Bidegain, um dos argumentistas da comédia "A Família Bélier" e colaborador habitual de Jacques Audiard ("Dheepan", "Ferrugem e Osso", "Um Profeta"), é uma coprodução franco-italiana cujo elenco junta Samuel Labarthe, Xavier Maly, Maximilien Seweryn ou Jérémie Laheurte a nomes menos conhecidos. Todos contra "um vilão muito carismático", conforme descreveu o realizador ao SAPO Mag.
SAPO Mag - O que o levou a fazer um filme em torno do incêndio da Catedral de Notre-Dame?
Jean-Jacques Annaud - Encontrei aqui uma oportunidade de fazer um filme com muita tensão. Estranhamente, um thriller espetacular. Quando soube deste incêndio, pensei logo que tinha todos os ingredientes do género de filmes que adoro, que me dá vontade de ver no cinema, de me envolver numa história imersiva com tensão dramática. E vi a beleza e fascínio de um projeto em torno deste incêndio, que também é simbólico de uma mudança civilizacional, do fim do domínio do mundo cristão. Nesse sentido, não sou muito francês, já que os franceses tendem a preferir filmes mais contidos com dramas intimistas e este é um drama colossal - com implicações colossais num edifício mítico. E o mais fascinante é que, nesta história, a realidade é mais forte do que a ficção. É uma história verídica, e muitos colegas meus norte-americanos adoram contá-las. E este é uma sucessão incrível de mini-catástrofes, pequenos passos em falso que ninguém poderia imaginar. Quando falei com as pessoas que tentaram combater o incêndio, nem pude acreditar no que me contaram. Foi tão bizarro, tão estranho e tão cativante. De certa forma, este foi o argumento que escrevi com maior facilidade porque foi amparado pelos eventos verídicos.
A opção pela ficção fez sempre parte da ideia inicial ou considerou fazer um documentário?
Propuseram-me fazer algo que se aproximasse do documentário, mas o meu estilo não é esse, não é algo no qual me sinta à vontade nem que quisesse fazer. É uma reconstituição de um drama de forma tão próxima da realidade quanto possível. A tal ponto que os bombeiros que estiveram nas gravações, e que foram meus consultores, se surpreenderam com o facto de o resultado estar tão perto do que viram ao combater o incêndio. Esta não é a primeira vez que conto uma história baseada em factos verídicos. Fiz "Sete Anos no Tibete", "Inimigo às Portas", mas a diferença é que os eventos que inspiraram esses filmes estavam a uma distância de várias décadas. Desta vez, o evento tem dois anos e pude tirar partido de pormenores espetaculares, intrigantes e entusiasmantes. E desconhecidos e verdadeiros.
Como foi desenvolver um thriller em torno de um incêndio verídico?
O fogo é um vilão muito carismático. Quanto melhor é o vilão, melhor é o filme, dizia Hitchcock. Aqui o vilão é o fogo, que pode ser agradável, quando nos aquece à noite, quando nos ilumina, mas que também nos devora e nos reduz a cinzas em poucos segundos. Tem essa dualidade. E a minha estrela é das mais belas sobreviventes, é uma estrela há mais de 800 anos, um edifício magnífico, simbólico, dos mais visitados do mundo. Por isso, há aqui uma combinação de elementos muito cinematográficos. Adoro filmes para o grande ecrã, adoro filmes com ótimo som, e acho que o cinema devia primar pela diferença. Uma noite a ver televisão pode ser muito boa, mas é diferente quando decidimos sair de casa para passar a noite com um filme que nos envolva e nos faça sentir emoções no cinema.
Apontou a mudança civilizacional como elemento-chave deste filme, embora também seja um elemento decisivo de parte da sua obra. O que o fascina nessa questão?
Sigo sempre o meu instinto e aqui não tive dúvidas quando me apercebi da complexidade e insanidade da realidade. Achei que era um tema belíssimo para um filme relevante. Tento sempre apresentar um grande espetáculo porque me considero parte da indústria de entretenimento. Muitos colegas meus franceses estão muitas vezes contra essa ideia. Mas quando vou ao cinema, gosto de ser transportado e de me deixar levar pelas imagens, viajar para um mundo novo, descobrir coisas. E estou só a tentar fazer o que gosto com o estilo de que gosto.
Escrevi o argumento durante o confinamento e senti que, depois dessa fase, as pessoas iriam precisar de uma boa razão para ir ao cinema. E quando estava a filmar, percebi que este filme tinha qualidades excecionais para poder levá-las às salas. E estou a falar de um público que não é necessariamente o que vai ver filmes de super-heróis. Essa também foi parte da minha preocupação, até porque sei que a COVID-19 e a crise económica vão mudar as opções de lazer.
Disse que o fogo era o vilão deste filme, mas também se poderá dizer que há outro. Não necessariamente a humanidade, mas a negligência, a burocracia...
A falta de preparação.
Isso.
Tem toda a razão. É por isso que sinto que estamos em risco. Pensamos que o conforto em que vivemos vai durar para sempre porque está tudo bem, estamos protegidos, temos bons serviços de saúde, estradas seguras, liberdade. Isso é tudo tido como garantido. E pensávamos que Notre-Dame não poderia ser destruída porque está cá desde sempre. Mesmo durante o incêndio, muita gente pensava que o fumo vinha do parque de estacionamento. E está a acontecer o mesmo com a nova guerra que estamos a enfrentar por estes dias. Parecia impossível. Não nos preocupamos o suficiente, a fragilidade da vida não é particularmente tida em conta. E é assim que as catástrofes acontecem. Muita gente me tem dito que o incêndio de Notre-Dame é uma alegoria da falta de preparação que temos. Mas tem toda a razão quando diz que o fogo é o principal vilão e a seguir está a forma como a cidade de Paris tem sido gerida. E eu sei porque moro no centro de Paris e mal consigo chegar a casa de carro, com trânsito todos os dias até à uma da manhã. Demoro 17 minutos a fazer de táxi uma distância que faço a pé num minuto e meio.
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