Há cinco fases do luto – negação, raiva, negociação, depressão e aceitação. Montgomery Brogan (Edward Norton) é um homem que está a fazer esse caminho. Está conformado com o seu destino, mas não sabemos o que o espera durante uma boa parte de “A Última Hora” (2002), filme de Spike Lee, com história e guião de David Benioff.
Monty é um traficante de droga a mando de um russo poderoso, que alguém denuncia à polícia e que a justiça condena a sete anos de prisão. Monty não embarcou naquela vida por necessidade. É certo que pagou as dívidas do bar do pai, mas vemo-lo debater-se internamente com a sua origem e o momento a que chegou: filho de uma família de emigrantes irlandeses, é nova-iorquino de nascença e frequentou bons colégios até ser expulso por vender erva aos colegas. Caminha pelas ruas da cidade como se fossem suas. Mas tem no rosto uma marca evidente, como se tivesse sido agora traído por aquela cidade que o viu crescer.
É nessas ruas que Monty passa as últimas 24 horas antes de ter de entregar-se para cumprir a sentença e é nesse horizonte temporal que o filme acontece.
Mas começamos muito antes. Monty tenta convencer Kostya (Tony Siragusa), o seu parceiro/guarda-costas, a ajudá-lo a resgatar um cão que foi espancado e abandonado. Mais à frente, vamos ver o protagonista lembrar esse momento como uma boa ação que fez. É por sua causa que Doyle, o cão, tem a oportunidade de viver mais dias. A metáfora é evidente.
Aquela primeira cena de “A Última Hora” é um exemplo brilhante de caracterização das personagens. Monty vai querer retirar-se do negócio; Kostya revelar-se-á um cobarde, um falso amigo. Logo de seguida, os créditos iniciais do filme sucedem-se ao som de uma música melancólica, compassada, um jazz triste e dramático que acompanha todo o filme (responsabilidade de Terence Blanchard). A imagem revela uma perspetiva de Nova Iorque.
Nova Iorque pelo olhar de Spike Lee
Uns dizem que “A Última Hora” é uma dedicatória de amor de Spike Lee à cidade. Outros consideram que é o filme que melhor retrata o pós-11 de Setembro. É que “A Última Hora” estreou em dezembro de 2002, apenas 15 meses depois dos ataques terroristas que derrubaram as Torres Gémeas do World Trade Center. O realizador decide mostrar-nos, na segunda cena do filme, aquele horizonte, onde as torres estão representadas pelos dois feixes de luz que as substituíram.
O livro de David Benioff foi publicado antes dos ataques. Entre o guião e as filmagens, Benioff e Spike Lee decidiram encarar o luto de frente e, sendo este o primeiro filme que o faz depois daquela data, ficou para a história pela decisão corajosa.
Em certa medida, “A Última Hora” equipara-se a “Apocalypse Now”, onde também se adapta um livro a um contexto diferente, embora aquele fale dos traumas da Guerra do Vietname poucos anos depois do seu fim. Só que “A Última Hora” enfrenta o tabu sem lidar com a raiva. Ali vemos a cidade numa fase mais passiva do luto, algures entre a depressão e a aceitação.
O contexto serviu perfeitamente a história, porque também Monty se encontra nesse limbo. De resto, era inevitável que Spike Lee agarrasse este livro com o seu olhar sociológico crítico. E talvez por isso se tenha permitido recriar uma paleta mais ampla de emoções além da aceitação, porque as outras personagens da história estão em fases diferentes do luto.
Para aquele último dia de liberdade (ou de vida, como é encarado por todos), Monty encontra-se com o pai, James (Brian Cox) no tal bar de tradição irlandesa enraizada, aculturado pela vida nova-iorquina, onde se aplaudem as equipas locais e homenageiam os bombeiros que perderam a vida no 11 de Setembro. James tenta negociar o perdão do filho e a expiação da sua consciência: diz-lhe que a culpa de ter chegado ali é sua, do seu vício do álcool quando a mãe de Monty morreu, tinha ele 11 anos... A personagem de Edward Norton rejeita esta versão a tentar sossegar o pai, mas afasta-se para recuperar a sua aparente serenidade. Na casa-de-banho, vê escrito no espelho duas palavras que despoletam o melhor monólogo do filme, uma sequência que ganha a todos os filmes da lista em termos de edição.
O Monty do outro lado do espelho começa um discurso de ódio contra tantos grupos da cidade: os paquistaneses “a emanar cheiro a caril dos poros” enquanto deslizam pelas ruas com os táxis decrépitos; os coreanos que vendem fruta há 10 anos em Nova Iorque mas ainda não falam inglês; a máfia russa que bebe chá em Brighton Beach enquanto traça os seus planos; os brokers de Wall Street, armados em Gordon Gekko, que roubam as poupanças das massas trabalhadoras; os porto-riquenhos, aglomerados em bandos dentro de carros; os descendentes de italianos, que podiam ser figurantes nos Sopranos; as esposas ricas de Upper East Side, entre compras e operações plásticas...
Parece que não fica ninguém fora do desabafo de Monty (qual Travis Bickle, a percorrer Nova Iorque dentro do seu táxi), numa cena que até constava do livro mas que esteve para não entrar no guião. Só que Spike Lee não hesita a pôr o dedo na ferida e não só quis essa cena no filme como fez questão de ilustrar todos os ataques nela visados, incluindo à comunidade negra, à Al Qaeda e a Osama Bin Laden. Apenas 15 meses depois do 11 de Setembro, imagina-se a reação que este momento terá tido nas salas de cinema dos EUA.
O monólogo continua. Monty aponta o dedo aos melhores amigos, aqueles que convidou para passaram consigo a sua última noite; acusa o pai; e acusa a namorada, que evita durante quase todo o filme por achar que a denúncia à polícia teria partido dela. A acusação final devolve-nos ao espelho. O último dedo é apontado ao próprio Monty, que tinha tudo e deitou tudo a perder. A aceitação chega, por aquela via, como uma assunção de culpa que já não pode tardar mais.
Jacob Elinsky (Philip Seymour Hoffman) encontra-se com Frank Slaughtery (Barry Pepper) em sua casa. São eles os amigos de infância de Monty. Da janela do apartamento, vê-se os trabalhos de limpeza dos destroços no Ground Zero, enquanto as personagens conversam sobre como encarar o amigo nesta que é a última noite da sua vida porque, como dizem, só lhe surgem três opções no caminho: a prisão – morte certa, a julgar pelo discurso –, a fuga ou o suicídio.
Jacob é um professor de Inglês que Monty diz nunca ter sido capaz de aceitar que nasceu de boas famílias e que tem posses. A sua história é a luta interna entre fazer a coisa certa ou ceder à tentação: é que Jacob está inebriado por uma das suas estudantes, Mary (Anna Paquin), de apenas 17 anos. A personagem de Philip Seymour Hoffman fica presa à sua passividade.
Já Frank é o oposto. É um ambicioso e frenético trader de Wall Street, a quem não custa admitir que Monty vai receber o castigo que merece pelo crime cometido, o de fazer fortuna à custa dos vícios e do sofrimento de outros. A crítica é quase autoinfligida e não é estranho ver que estas personagens parecem ser diferentes facetas de uma mesma pessoa.
Pela sua postura enérgica, Frank é mais explosivo. Toca-lhe então a raiva como fase de luto e Barry Pepper protagoniza a melhor cena de todo o filme, ainda mais emotiva e empática do que o monólogo de Edward Norton. É já manhã quando, no parque, Monty entrega o cão que havia resgatado a Jacob e pede a Frank que o agrida. A ideia é aparecer na prisão com um ar mais duro do que aquele que tem, porque Monty teme ser violado e julga que a manobra lhe comprará algum tempo. Frank repudia o favor mas, ao ser provocado, desfere golpes fortes sobre Monty enquanto liberta toda a raiva acumulada, acabando a gritar, ajoelhado no chão de betão, com as mãos ensanguentadas. Também ele sente que Monty tinha tudo e deitou tudo a perder. A catarse é tão potente que se transfere facilmente para os espectadores e perguntamo-nos porque é que Barry Pepper é um ator tão subvalorizado.
Resta apenas Naturelle, a namorada de Monty, interpretada por Rosario Dawson de forma tão indecifrável que se torna plausível a suspeita de que terá partido dela a denúncia. Frank confronta-a. Diz-lhe que foram ambos cúmplices do crime. Ela porque se aproveitou do dinheiro sujo de Monty, sabendo de onde ele vinha. Os amigos de infância porque nunca disseram nada durante aquela espiral descendente.
David Benioff e Spike Lee conseguem esta proeza de mostrar luz e sombra em todas as personagens, humanizando-as e dando-lhes uma credibilidade inabalável. É com este terreno que preparam o final da história: James conduz Monty à prisão mas, no percurso, sugere-lhe a fuga como alternativa. Num monólogo que nos leva ao final do filme, o pai de Monty pinta o cenário da vida que o filho devia ter tido. Diz-lhe que podem continuar o caminho, encontrar uma cidade pacata, insuspeita, onde o fugitivo consiga o anonimato. Diz-lhe que procure um trabalho discreto e, talvez dentro de uns anos, tente contactar Naturelle. Diz-lhe que podem encontrar-se e construir uma família longe de casa. E que, um dia, dali por muito tempo, revelará aos filhos e netos o seu segredo.
A artimanha do realizador é esperada e confirma-se. Qual foi a opção escolhida por Monty? A resposta fica no ar, quando voltamos ao carro onde ele segue com o pai, ainda com a cara inchada e ensanguentada. Há, claro, teorias que servem as duas versões. Mas Spike Lee trouxe-nos até este final a questionar os limites da moral das personagens, das suas vidas, do contexto onde se movem, das suas escolhas... É apenas justo que possamos especular sobre o destino escolhido por Monty com as ferramentas que o realizador e o argumentista nos deram. A aceitação, essa, chegou de certeza, ainda que a redenção e o arrependimento não.
Comentários