O reflexo dos neons nas poças de água, uma baforada de fumo que se ergue sobre um candeeiro de rua, diálogos debitados à velocidade de uma "tommy gun" e uma banda sonora jazz "be-bop" a inundar a tela iluminada por altos contrastes. Isto é "noir". Um estilo com marginais e corruptos num beco escuro, detectives lacónicos e "femme fatales".

Surgidas durante a Segunda Guerra Mundial, onde exploraram a inocência perdida e as normas sociais, desmascarando os comportamentos e as figuras de poder, as narrativas "noir" sempre foram pautadas por um herói estoico, de raiva reprimida, melancólico e introspectivo. Um detetive críptico, solitário, que personificou o ser-se "cool", com a sua gabardine molhada e o olhar inquisitivo que substituía a intenção das suas parcas palavras.

Na adaptação como argumentista, realizador e protagonista principal de "Os Órfãos de Brooklyn", Edward Norton pega nas personagens do escritor Jonathan Lethem e transporta-as dos anos 80 para os 50, re-interpretando esta figura icónica que teve origem nos livros "hard-boiled" da década de 20. E vira-a ao contrário, dando-lhe palavras que não quer dizer, intenções que não quer mostrar.

Lionel Essrog é um detetive com Síndrome de Tourette, uma perturbação neurológica crónica que se manifesta em tiques motores e vocais involuntários, rápidos e repetitivos (como se imagina, algo inoportuno quando se quer fazer "bluff"). Para resolver o assassinato de seu mentor e único amigo, Frank Minna (Bruce Willis), epítome da velha guarda, mergulha num universo de corrupção, envolvendo-se de várias personagens basilares com uma palavra a dizer na edificação da cidade de Nova Iorque.

Com ecos de "Chinatown" (1975, de Roman Polansky) ou "Quem Tramou Roger Rabbit?" (1988, de Robert Zemeckis), "Os Órfãos de Brooklyn" também parte da premissa de que a cidade cresceu assente em negócios tortuosos, preconceitos racistas e abuso de poder vindo de magnatas ambiciosos. Neste caso, Moses Randolph, o auto-proclamado salvador da cidade, representado vorazmente por Alec Baldwin.

Quanto mais tudo se torna mais perigoso, mais age a personalidade obsessiva de Lionel. E esta compulsão, que era o seu tormento, tornar-se-á o seu grande talento, ao mesmo tempo que personagens interpretadas por Willem Dafoe ou Gugu Mbatha-Raw lhe abrem o mundo eletrizante do jazz, onde a espontaneidade, a polirritmia e a atonalidade o vão seduzir e fazer-se sentir compreendido. Toda esta sequência de auto-descoberta de Lionel conquista a empatia dos espectadores.

De argumento repleto de sub-narrativas, algo gratuito nos ganchos de desenvolvimento, "Os Órfãos de Brooklyn" é para fãs de filmes "noir", dispostos a deleitarem-se com o género e a homenagem. Outros poderão achá-lo algo monótono, lento e simplório na forma como explora os tropos do género, onde a indispensável caixa de fósforos como primeira pista ou a técnica da “arma de Chekhov” são escancaradas na nossa frente.

Explorando temas como discriminação racial, gentrificação e uma personagem marginalizada que irá sobrepor-se a tudo isso, Edward Norton compõe ainda uma carta de amor à cidade de Nova Iorque com uma recriação histórica deslumbrante, o uso de uma banda sonora de jazz negro e meloso de acordo com os cânones da musicalidade dos filmes dos anos 40 e 50, a introdução de uma edição arrítmica que procura representar a mente distorcida de Lionel e a cinematografia a relembrar o trabalho de fotógrafos como Robert Frank e Vivian Maier, ou o sempre referido pintor, Edward Hopper.

"Os Órfãos de Brooklyn" é um drama "noir" que nos transporta para uma era do cinema americano.

"Os Órfãos de Brooklyn": nos cinemas a 14 de novembro.

Crítica: Daniel Antero

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