Não é novo o tema do divórcio para Noah Baumbach. Já fez parte da sua consagração num retrato autobiográfico em “A Lula e a Baleia” (2005), onde espelhava a separação dos seus pais em meados de 80 e nas manifestações que tais atos desencadearam numa estrutura familiar e afetiva, aparentemente sólida.

Passados 14 anos e com uma mão cheia de trabalhos derivativos na comédia "mumblecore" [estilo de cinema americano independente de baixo orçamento e naturalista] e em abordagens de maturidades tardias, o realizador regressa ao estado terminal de relação em mais um espelho. Apesar do próprio o negar, há quem encontre contornos pessoais deste “Marriage Story” no seu divórcio real com a atriz Jennifer Jason Leigh em 2010.

São traços que reconhecemos na personagem encarnada por Scarlett Johansson, atriz que finalmente encontra no universo do realizador a sua emancipação, o reencontro com a maturidade, e Adam Driver como uma "persona" fingida do próprio autor. Estas são as peças centrais de uma batalha jurídica que serve apenas de fachada para um verdadeiro embate emocional, a do desgaste de uma relação que vem provar que nada dura para sempre, nem mesma ilusão do sacrifício romântico.

Convém sublinhar que o hiato de mais de uma década entre “A Lula e a Baleia” e “Marriage Story” nos revela um realizador em transgressão quanto à sua posição em relação ao mundo à volta.

Antes, era o passado que se instalava como uma tela a ser preenchida  e um realizador que exorcizava os pecados dos seus pais como seus, culpabilizando-os quanto à sua formação. Agora, Baumbach assume finalmente a figura paternal, responsabilizando-se pelas falhas que antes apontara. É a sua passagem à maturidade que tanto procurara e ostenta-a com com a classe de um homem que se despe cada vez mais, deixando o minimalismo exposto à vista de todos.

Visto como um dos favoritos aos Óscares, "Marriage Story" é um filme sobre atores, erguido por atores e motivado numa relação de atores com atores em que Baumbach apenas fornece o material para as suas composições enquanto materializa a "distância", literal em cada espaço, como uma apologia de uma persistente falha comunicacional.

Marido e mulher já não falam, não se tocam, não evidenciam o seu afeto. É com planos gerais dos diferentes cenários que observamos essa trégua silenciosa, Adam Driver num canto, Scarlett Johansson no outro. A aproximação será porventura a mais furiosa das batalhas campais, uma troca verbal que despoletará o pior destas personagens e o melhor destas atuações (Adam Driver é, sobretudo, explosivo).

Obviamente que ficamos bem servidos com o leque de secundários (Ray Liota, Alan Alda, Wallace Shawn e Laura Dern (maravilhosamente a reflorescer na indústria após ter sido submetida a banhos "lyncheanos" em “Inland Empire”), mas é pelo que (ex)casal protagonista que descobrimos um semi-inventário da natureza desgastada das relações. O que existe depois do “felizes para sempre”?

A carente negociação de carícias é já um dos estandartes do cinema de Baumbach, a sua afirmação como homem superado e feito, como artesão das ligações embutidas entre homens e mulheres e o trabalho cúmplice com os seus atores. "Marriage Story” é isso mesmo, a evolução teatral que se revê em códigos antigos e consumidos, hoje desprezados cada vez numa Sétima Arte que se vangloria pela sua aproximação ao realismo formal e essencial (o que não inclui, claro, o género dos super-heróis).

Há quem ainda aponte ares do cineasta sueco Ingmar Bergman no seio deste diálogo de planos (basta ver as comparações com “Cenas de um Casamento”) ou até mesmo na perspetiva emocional destas personagens. Contudo, a verdade é que tudo aqui ecoa como uma preservação do mais puros métodos de cinema, o simples trabalho de atores. E nisso, por mais apontamentos e anotações que possamos fazer, é um mérito que não poderemos tirar a Noah Baumbach.

"Marriage Story": na Netflix a partir de 6 de dezembro.

Crítica: Hugo Gomes

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