A HISTÓRIA: A Hollywood da década de 1930 é reexaminada da perspetiva do mordaz e alcoólico argumentista Herman J. Mankiewicz, durante a sua corrida para acabar "O Mundo a Seus Pés".

"Mank": disponível na Netflix a partir de 4 de dezembro.


Crítica: Hugo Gomes

Se David Fincher é realizador para se agarrar a um saudosismo "hollywoodesco" (ai, esses tempos áureos de tão oleada e funcional indústria), obtemos a definitiva resposta à dúvida com "Mank". Que é não.

Como era esperado do autor por detrás de algum dos "thrillers" mais admirados do cinema norte-americano contemporâneo (“Se7en”, “Clube de Combate”, “Zodiac”), parte-se aqui uma teorização e, consequentemente, de um arrufo, como objetivo: "Mank" é um exercício sobre um debate constante quanto à verdadeira genialidade por detrás de uma obra-prima do cinema.

Falamos de "Citizen Kane - O Mundo a Seus Pés", realizado em 1941 por Orson Welles, com 24 anos. Afinal, aquele que viria a perdurar anos e anos como o “Melhor Filme de Todos os Tempos” é um abrigo de mistério, conspirações e disputas de custódia artística e criativa.

Foram e são muitas as vozes de suspeita sobre os feitos de "menino prodígio" em "Citizen Kane (e na progressão da carreira), até porque também por aqui nos deparamos com a câmara de Gregg Toland (cuja técnica da profundidade de campo traria uma inovação estética a Hollywood) ou a edição de Robert Wise (mais tarde, o realizador de obras bem conhecidas como “West Side Story”, "Música no Coração" e “Star Trek”). Mas foi no seu esqueleto, o guião escrito a meias com o lendário dramaturgo e argumentista Herman J. Mankiewicz, que suscitou toda esta vontade de desconstruir a genialidade de Welles por parte do argumentista de "Mank", Jack Fincher, o pai do realizador, falecido em 2003.

Será que o responsável pelos alicerces de “Citizen Kane” é, afinal, Mankiewicz e não o talento suado de um sobredotado? A lendária crítica de cinema Pauline Kael defendeu esta teoria. David Fincher, por sua vez, segue pela mesma perspetiva, recorrendo a um método algo detetivesco e mimetizando estetica e narrativamente o célebre filme de 1941.

créditos: Gisele Schmidt/NETFLIX

O exercício, voluntariamente esboçado como um guião em desenvolvimento, insufla vida à tese do toque de Midas de Mankiewicz, sem nunca questionar nem apresentar uma visão dúbia do que terá acontecido. Vindo de um artesão de um engenhoso "thriller" como “Zodiac”, sempre em gradual dúvida e crente absoluto num clima de mistério, “Mank” está demasiado seguro nas suas convicções e com isso, a figura de Orson Welles (interpretado por Tom Burke) sai-se mal na fotografia.

Não defendendo de todo o talento (ou não) quase divino de Welles, a questão é que “Mank” apoia-se demasiado na ideia corrente (ou já transformada em cliché dos clichés) do génio-artista auto-destrutivo com Gary Oldman como o argumentista desbocado e capaz de se conduzir com inspiração mesmo alcoolizado.

Em tempos, a Hollywood clássica aproveitaria esta história para impor a sua moral de redenção e salvação cristã. Já a Hollywood pós-Hollywood renega esse propósito fabulista e de mensagem pedagógica, persistindo na desordem como um sinónimo da criação humana ao mais alto nível: serão o génio e o caos indissociáveis?

Deixando a pergunta no ar, David Fincher bate-se depois numa aventura paralela, o jogo das referências e adereços cinéfilos para maravilhar os fãs. Manobra previsível, digamos, vindo de um projeto que tenta beber dessas fontes. Mas a minagem de nomes, produtores, realizadores, atores, filmes, estúdios (as “majors” no seu apogeu), servem apenas como chamariz para uma tentativa de conclusão do mistério sobre "Citizen Kane".

Obviamente que não há amor por estas épocas longínquas e por diversas vezes a acidez do realizador vem ao de cima, através de apontamentos de contexto político e social (chegam a ser o mais entusiasmante de "Mank"). Mas o pecado maior é servir-se do mais profundo academismo de requinte para encantar a temporada de prémios.

Não é este Fincher que costumamos apreciar: em vez de uma reinvenção temos um projeto anónimo, desinspirado e fanfarrão. Se vamos discutir o génio de “Citizen Kane”... poderemos fazê-lo ao (re)ver “Citizen Kane”.