A HISTÓRIA: Duas mulheres, Janis e Ana, coincidem num quarto de hospital onde vão dar à luz. Ambas são solteiras e engravidaram por acidente. Janis, de meia-idade, não se arrepende e é exultante. A outra, Ana, uma adolescente, está assustada, arrependida e traumatizada.

"Mães Paralelas": nos cinemas a partir de 2 de dezembro.

Crítica: Hugo Gomes

Em tempos, Pedro Almodóvar era etiquetado como o “realizador das mulheres”. Hoje em dia, tendo em atenção a representatividade, muitas delas levando a temáticas e abordagens a grupos restringidos, tal cognome tornou-se automaticamente impróprio ou politicamente insensível.

Contudo, não podemos fugir da capacidade, ou fascínio, do cineasta em integrar na sua filmografia um leque, vasto e curioso, de personagens femininas, várias delas inspiradas na sua própria mãe, figura cuja importância o próprio tem vincado até hoje. “Mães Paralelas”, o seu novo filme após o “muy” intimista “Dor e Glória” [ler crítica], é uma leve reviravolta ao papel maternal, mantendo os seus traços inspiradores mas devolvendo-lhe a irreverência solicitada pelos novos tempos.

Aqui, Penélope Cruz é uma mãe solteira (assim opta), profissionalmente respeitosa e bem sucedida, que acolhe uma jovem mãe (Milena Smit), ensinando-a as mais variadas tarefas domésticas, com destaque para as da cozinha. Cada lição é uma intervenção gastronómica, passo-a-passo na confeção como no amor, delicadeza dos gestos e a manifestação de experiências. E numa dessas preparações, Cruz enverga, bem saliente, uma camisola com o slogan “Devemos ser todas feministas” estampado. Não é mero adereço, nem tendência do momento, é um statement de Almodóvar, a atualização do seu velho e recorrente papel, a mãe inserida num estado contemporâneo e no significado feminista do termo. Será que a definição absoluta advém de “ativismo” ou a mera vivência com fidelidade às suas liberdades e convenções?

Mães Paralelas Madres paralelas

Embora Almodóvar seja um homem que coexiste num mundo onde a igualdade adquire um peso na ficção e na criação, “Mães Paralelas” é um filme feminista (da mesma forma que muitos da sua carreira foram), porque simplesmente são as mulheres que ganham aqui um protagonismo imenso (os homens são, neste caso, meros “doadores”), não apenas na narrativa ou na carga dramática, mas nas comunidades e convivências alicerçadas em cada uma das suas ficções, com toda e merecida sensibilidade.

Mesmo que obra menor, aliás, uma novela que não esconde o seu lado de farsa e de plasticidade técnica (os constantes fade outs que adquirem cumplicidade com o artificialismo sensual e por vezes onírico), servida de isco para um panfleto (quase pedagógico) de punho cerrado a favor das memórias importunas e incómodas. O franquismo, pó varrido para tapetes politizados, é aqui denunciado em contornos de subenredo, uma inconveniência solicitada para desmascarar novelas mal emaranhadas.

Nos últimos anos, o cinema espanhol tem conseguido encontrar formas para referir o tema tabu, e “Mães Paralelas” lida isso com uma agressividade revanchista e de bramir armas convictas. É, à sua maneira, um filme para novas gerações, determinadas em não esquecer e mais que isso, perpetuar uma dignificação dos sofridos de um regime e dos “sem nome” ocultados pelo mesmo. Nesse sentido, Pedro Almodóvar fez o seu papel.